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Roma (2018)


Existe um jeito bem simples, ao menos para mim, de definir se um filme cumpriu seu papel de arte ou não: assistir aos créditos finais, ou mais precisamente, ficar parado em frente a tela enquanto eles rolam. Os créditos cumprem uma importante tarefa após o filme, que é lentamente, tirar o espectador daquela realidade e recolocá-lo no mundo atual.
No caso de Roma, essa tarefa não foi nada fácil, tamanha a imersão que o diretor, roteirista, fotógrafo e editor Alfonso Cuarón proporcionou em suas duas horas e quinze minutos. Esta aliás, é sem dúvida a maior qualidade de seu novo trabalho que vem para colocá-lo de vez na lista dos principais diretores da atualidade.





Em Roma (Roma, 2018) acompanhamos a vida de Cleo (Yalitza Aparicio), uma empregada doméstica que vive nos fundos da casa de seus patrões junto a mais uma empregada (Nancy Garcia). A família é composta por um casal e quatro filhos e pertencem a uma classe média-alta do bairro Roma, na cidade do México.

Desde seu primeiro minuto somos convidados a entrar na rotina de Cleo, que se resume basicamente nas tarefas diárias da casa, cuidados com as crianças e algumas saídas ao centro da cidade com o então namorado. O destaque aqui vai para o trabalho de direção e fotografia de Cuarón, que opta por manter uma câmera sempre estática e movimentá-la de forma delicada, preocupado em interferir o mínimo possível naquele ambiente. A câmera observa tudo, mas nunca interage. Perceba que ela sempre mantém uma distância segura dos personagens, dificilmente os encarando em planos mais próximos e optando em filmá-los em planos gerais e mais abertos.

É por meio desses artifícios que, sem perceber, acabamos totalmente integrados aquela família e a compreender suas nuances, como a estranha sensação de sentir-se amada, mas ao mesmo tempo distante daqueles com quem convive. É nítida a boa relação que a família mantém com a empresa, como também é nítido o abismo social que os separa, e de certa forma também o mantém. 

Perceba, por exemplo, que em muitas vezes Cleo é o elo de ligação da própria família, mostrado por Cuarón quando a câmera parece a acompanhar pela casa, enquanto ela “põe em ordem” todos os cômodos. Em outro exemplo, quando Cleo precisa comentar algo importante com sua patroa, veja o tão difícil para ela é dizer aquelas frases, que quase não saem de sua boca.


Os dois primeiros atos do filme são contemplativos e presos a realidade cotidiana de Cleo. A partir de certo ponto, o filme traz esta realidade interna da casa para um contexto social, sem nunca tirar a empregada de cena. É nesse caminho que o filme nos oferece três momentos impactantes e que só fazem o sentido emocional aos espectadores, por naquele instante, já estarmos inteiramente imersos aquela realidade. São as grandes cenas de cinema dos últimos anos e que não precisaram de nenhum corte, música ou efeitos. Nas três situações fomos reféns de uma câmera parada e de um roteiro preciso que constrói com perfeição todas as ações.

A cena da praia, por exemplo, só é efetiva por estarmos convivendo com o contexto de Cleo por muito tempo, pela cena ocorrida anteriormente e pela nossa empatia, que já prevê tudo o que poderia ocorrer caso o ocorrido tomasse outro rumo.


Não é correto finalizar sem lembrar que Roma é filmado todo em preto e branco, não contém músicas e sua protagonista não é uma atriz profissional. Apesar ou justamente por ser tão simples é que Roma também se mostra unicamente puro e verdadeiro, e nos atinge justamente por que, ao menos uma vez na vida, todos guardamos esses sentimentos. O que Cuarón faz aqui é simplesmente transportá-los para a tela grande, com uma delicadeza e destreza sublimes.

Ao final, não choramos por Cleo pelo o que ela vive ou pelo que ela jamais irá viver. Choramos por que de uma forma ou outra sabemos quem ela é e onde ela está. Choramos por que muitas vezes é mais fácil esconder esta Cleo no quarto dos fundos, não importa o que ela faça, não importa quantos eu te amo se diga, quantos aviões passem ou quanto limpa as calçadas estejam. No mundo de Cuarón e no nosso também, Cleos serão sempre Cleos.

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