Pular para o conteúdo principal

O amor é a flor da pele e eterno!



“Antigamente, se alguém tivesse um segredo que não quisesse partilhar,
subiam uma montanha, procuravam uma árvore, abriam um buraco nela e sussurravam o segredo para dentro do buraco.
Por fim, cobriam-o de lama e lá deixavam o segredo para sempre”




A frase acima é dita por Chow Mo-Wang a seu amigo Ping, no filme Amor à Flor da Pele (2000), do diretor chinês Wong Kar-Wai, em uma das histórias de amor mais bem contadas do cinema, segundo muitos críticos. Kar-Wai consegue em seu filme dedicar ao amor a tradução que talvez mais o represente: a eternidade, ou o popularmente, até que a morte nos separe.
Na história, conhecemos sr. Chow e a srta. Li-zhen Chan, os dois se mudam para Hong Kong da década de 60 com seus respectivos cônjuges no mesmo dia, onde ocupam quartos vizinhos de um mesmo edifício. Em comum, além do lugar onde vivem, os dois tem a ausência total dos parceiros, e posteriormente uma descoberta: seus cônjuges estão tendo um caso entre si. A descoberta aproxima Chow e Li-zhen que passam a conviver mais próximos, em primeira instância para tentar entender porque ou como o romance entre seus parceiros começou. A partir desse propósito, uma forte e bela amizade começa a ser esculpida e aos poucos deságua em amor e paixão.

O desenrolar da história traduz a pureza e inocência dos dois e que Kar-Wai envolve em uma atmosfera romântica e sensual, fazendo uso de uma fotografia absurdamente perfeita, que se alia a uma trilha sonora viva e envolvente.

Em uma megacidade como Hong Kong, em plena explosão populacional, conhecemos Chow e Chan aprisionados a ambientes pequenos e claustrofóbicos e corredores escuros e estreitos. O ambiente representa também a vida dos dois, Chow, um jornalista, trabalha praticamente submerso a máquinas de escrever, mesas, telefones e carimbos. Chan, secretária, parece se esconder no minúsculo escritório que compartilha junto de seu chefe.





A rotina monótona persegue os dois. A falta de contato com outras pessoas também. Enquanto o tempo parece demorar para passar enquanto Chan, sozinha vai comprar o jantar, Chow, mesmo dentro de uma redação de jornal, parece estar sempre sozinho, com a exceção do amigo Ping, que funciona como uma antítese do protagonista.
O tempo, por sinal, é fator primordial na história. Os vários relógios que aparecem durante a trama tentam contar uma história que parece aprisionada em uma elipse atemporal, onde o próprio tempo não tem importância necessária. Assim nunca sabemos se aquele história que estamos vendo durou dias, meses ou anos.
Contribui a isso os poucos locais que os protagonistas compartilham, o trabalho, a lanchonete, o quarto de hotel, um beco de uma rua. Os locais representam uma tentativa de fuga da própria casa, dos próprios cônjuges, que ambos não tem coragem de abandonar. Seus valores e princípios morais falavam mais alto. Mesmo que para eles suas próprias casas (ou suas vidas?) representassem prisões, que o diretor enfatiza mostrando-os sempre atrás de grades. As flores só estão nos vestidos, as árvores nos abajures, as frutas, em quadros na parede. Nada tem vida
Kar-Wai constrói um universo paralelo para os dois. E os deixa presos as suas realidades, à melancolia de comprar o jantar, aos lugares que se repetem, às musicas que se misturam, aos incessantes relógios que não deixam de surgir na tela. Até a chuva parece ter uma hora exata para acontecer. De certa forma, a própria eternidade pode estar significada nestas sequências de ações rotineiras. Os dois, mesmos que seus corpos gritem, estão presos a tal realidade, que por princípios éticos ou morais, é difícil de transpassar.


O título americano para o filme é “In the mood for love”, uma adaptação, segundo o próprio diretor, da música I’m in the mood for love, de Bryan Ferry, que quer dizer, “eu estou no clima para o amor”. De fato, Kar-Wai constrói em seu filme um clima inusitado, único, e que facilmente transpõe a barreira da tela e cativa o público. Kar-Wai consegue como poucos transpassar o “clima do amor” por meio de sua arte.






Ao passo que os dois confirmam que estão sendo traídos, passam a estabelecer uma amizade escondida. Mesmo que as palavras não afirmem, é notável o interesse de um para com o outro por meio de gestos. O olhar da srta. Chan, a maneira charmosa que Chow acende e manuseia o cigarro, o respeito e a admiração mútua.
No entanto, por mais interessados, a atração, mesmo polvorosa, é contida. Nas palavras de Chan: “nunca seremos como eles”.
Chan aqui coloca seus princípios acima da paixão. Ela não quer repetir o erro do marido, mesmo que isto custe sua própria felicidade. Chow consente. Percebe que Chan se manterá firme e decide ir embora. E em umas das mais belas cenas do filme, os dois, que antes tentavam simular como seus cônjuges se conheceram, simulam agora sua própria despedida. E no derradeiro adeus, enquanto Chow vai embora às costas de Chan, em câmera lenta - o tempo para -, ela, antes acostumada a tocar e interagir com objetos, esfrega a mão junto ao braço. A falta que antes era material, passa a ser emocional.



Sr. Chow: Sozinhos, somos livres para fazer muitas coisas. Às vezes penso no que seria se não tivesse casado. Alguma vez pensou nisso?
Srª Chan: Talvez fosse mais feliz.





O amor proibido e impossível de Chan e Chow transcorre em toda sua duração sem nenhuma cena de beijo, sexo ou nudez. No entanto a sensualidade e desejo de um pelo outro salta a tela. A paixão que ambos compartilham é em sua essência pura e bela. E é isso que a torna eterna.
E é curioso como o eterno não é nenhuma exclusividade do casal (afinal, porque o romance entre os cônjuges também não poderia significar uma história de amor?). O eterno de Chow e Chan também é injusto (justamente quando comprometidos com outras pessoas vieram a conhecer seu verdadeiro amor?) e secreto (uma história tão bela merece mesmo manter-se escondida?).
O eterno também faz referência em outra passagem do filme onde os dois, mesmo estando em diferentes países, aparecem divididos em cena somente por uma parede. Esta é a eternidade de Chow e Chan. O resultado de sua beleza e perfeição é o usual, o corriqueiro. A história de Hong Kong pode ser a mesma em qualquer outra parte do mundo, (talvez uma resposta aos globos iluminados vistos no decorrer do filme?). Quem faz uma história eterna são seus próprios protagonistas, que a manterão viva dentro de si.
Na derradeira cena do filme vemos Chow em um antigo templo histórico. Ele sussurra em um buraco seu segredo e o tampa, conforme a tradição. A história enfim, pertence a eternidade. E assim como as ruínas daquele templo, agora são memórias do tempo e do silêncio, de seus dois protagonistas e de ninguém mais. O tempo enfim pára, eterniza e consequentemente, nunca morrerá!


 “Ele se recorda desses anos perdidos como se olhasse para uma janela empoeirada. O passado é algo que ele pode ver, mas não pode tocar e, tudo que vê, agora está turvo e mal definido“.





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Volver

Falar de Almodóvar nunca é fácil. Uma das características do cineasta espanhol é seu atrevimento e coragem em propor nas telas seus conceitos e ideias. E é de atrevimento e coragem que se faz esse texto, ao tentar transpor em palavras um pouco de um dos filmes que mais aprecio em sua filmografia: Volver. Volver conta a história de Raimunda (Penélope Cruz), mulher casada e com uma filha de 14 anos, que ainda tenta superar a morte de sua mãe, enquanto cuida da tia. A personagem de Cruz, inclusive, é quem carrega o filme por completo e dá alma à trama. Cada cena da atriz renova o filme, que composto por um excelente roteiro, nunca deixa a história se esvair ou perder força. Não à toa, em muitas vezes vemos Penélope enquadrada ao centro da tela, tomando para si toda a sustentação do longa. Traduzindo essa percepção para a personagem Raimunda, é assim que ela também encara a sua vida. Uma vez que, mesmo com um casamento complicado, dificuldades financeiras crescentes e um passado

Divertida Mente (Inside Out) é uma viagem fantástica rumo ao autoconhecimento

O primeiro filme da Pixar, Toy Story, completa 20 anos esse ano. Toy Story foi mais do que o primeiro filme produzido em computação gráfica do cinema, a história de Woody e Buzz Lightyear representou a entrada da Pixar no segmento de animação e uma revolução no modo de fazer desenhos. Em vinte anos foram quinze filmes produzidos. Nenhum deles pode ser considerado um filme ruim, e no mínimo três deles, obras primas. E Inside Out, ou Divertida Mente no título em português, é um deles. A Pixar conseguiu criar um padrão tão alto de qualidade que qualquer filme mediano produzido por eles pode ser considerado um Dreamwor..., digo, um trabalho ruim. O estúdio reúne sete Oscars de melhor animação em nove disputados, sendo que em duas oportunidades disputou na categoria de melhor filme - Up! e Toy Story 3.                 Divertida Mente segue a linha dos filmes citados. É Pixar em sua melhor forma, abusando de originalidade e criatividade. Com a direção de Pete Docter, o mesmo d