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Sobre a Superliga Europeia, o fim do futebol tradicional e o marketing em meio a tudo isso

O anúncio da Superliga Europeia em abril chamou a atenção do mundo para a situação do futebol e revela uma clara preocupação dos dirigentes esportivos sobre os rumos do esporte. Tá faltando visão de negócios para os dirigentes, e a gente fala um pouco disso. 



Em 18 de abril o futebol acordou assustado com o anúncio de uma Superliga composta por 12  times europeus e que prometia criar um campeonato exclusivo para eles, mais convidados pontuais. O anúncio se deu quase à meia noite de um domingo em formato de um comunicado à imprensa e sem movimento dos clubes ou representantes. 

A repercussão não poderia ter sido pior, e em menos de 72 horas o torneio já estava cancelado, ao ser acusado, principalmente por torcedores, de ir contra as tradições dos times e do próprio futebol e de seu único objetivo ser financeiro. 

São argumentos incontestáveis e que já revelam muito do como este anúncio foi mal planejado e contando com certo amadorismo, que vindo das maiores potências mundiais do esporte, não deixa de ser curioso.

O fato é que, intencionalmente ou não, a imagem da Superliga já foi prejudicada e a retomada do projeto, prometida por seu presidente, Fiorentino Pérez, se acontecer, vai precisar de um novo nome.

Os motivos desse desastre foram vários, mas alguns deles podem ser muito bem percebidos com uma breve análise:

Cultura: a Superliga não levou em consideração a cultura e a tradição dos times e que o próprio futebol carrega. A intenção de impor um campeonato apenas com times milionários, sem rebaixamento e claramente construído para lucrar mais (o anúncio foi enfático nesse ponto), conflitou diretamente com as origens do esporte, e a lógica da competição que, mesmo que cada vez mais rara, possibilita que nem sempre o melhor vença. A cultura é tão forte que os principais contrários a Liga foram os torcedores dos próprios times consignatários, que acusaram preferir um time fiel as suas origens a depender de um grupo controlador.

Público-alvo: a segunda falha foi não ter ouvindo o principal interessado com essa mudança, o torcedor, que se sentiu ofendido pela proposta e que inclusive, gerou efeito contrário, com grupos se manifestando contra as organizações mandatárias de seus times e provocando um retorno a um modelo de futebol tradicional. Do ponto de vista dos torcedores, os controladores têm um único interesse em usar as marcas de seus times: lucrar

Propósito: o que nos leva ao terceiro ponto, a clara falta de conexão e sentido da proposta do torneio com o que as pessoas esperam e os prendem ao esporte: a paixão e a competitividade. A Superliga foi anunciada como um acordo de grandes marcas, não como um campeonato. E aqui não entro no campo da hipocrisia de que não saber que todo e qualquer time ou campeonato tem como objetivo gerar receita e vender.  A questão é que essa intenção, por si só, não se sustenta. A Copa do Mundo e as Olimpíadas são os eventos esportivos que mais geram retorno financeiro no mundo, e que por trás, tem o interesse genuíno das pessoas com o conteúdo e entretenimento proposto e das empresas/times/atletas em estarem lá. É uma relação ganha-ganha, onde todos os lados veem valor e se conectam, seja pelo espírito esportivo dos Jogos, seja pela áurea de ser um campeão mundial.

Propaganda: Sim, faltou o básico. Não houve evento, coletivas, pronunciamentos oficiais, manifesto, nada. Apenas um anúncio sem defesas. E a Superliga tinha ótimos argumentos para convencer seu público: monopólio das atuais instituições que controlam o futebol, falta de competitividade entre os times, dificuldades financeiras provindas da pandemia e a principal de todas, a perda do interesse das pessoas pelo esporte. Nada disso foi abordado ou defendido, deixando para o público fazer seu próprio julgamento. O que poderia ser um campeonato para salvar o futebol, acabou morrendo em menos de três dias.


Então o futebol vai acabar?

Dificilmente, mas se quiser continuar mantendo o tamanho e potência que tem hoje, vai precisar mudar e se adaptar. Apesar da audiência geral do esporte seguir alta e batendo recordes, o interesse dos púbicos mais jovens vem diminuindo. Não é uma regra se aplica somente ao futebol, mas também a outros esportes “tradicionais”. Com o crescimento do e-sports e da velocidade e dinamicidade do mundo, assistir a uma partida de 90 minutos que contabiliza em média dois ou três gols não é nada atrativo. 

Não à toa, já vemos movimentos destes esportes investindo em torneios online e licenciando marcas para vídeo games. O principal game de futebol tem o nome da instituição que comanda o esporte no mundo, a Formula 1 vem colocando seus pilotos para disputar um torneio do game F1 antes do início da temporada, entre várias outras ações.

As transmissões também passaram por reformulações. Na última temporada da NFL, de futebol americano, algumas partidas foram transmitidas pelo canal infantil Nickelodeon, com direito a efeitos na tela para tornar o jogo agradável para crianças e promover o programa de família.

No Brasil, o Tiktok, plataforma que praticamente expressa o comportamento jovem, comprou os diretos da Copa do Nordeste e o Campeonato Carioca, e traz uma transmissão irreverente e divertida para o modelo. 

 


Tem saída?

Sempre tem. Um case que já falei por aqui foi o da NBA, que saiu de uma proposta de destacar as franquias para destacar as estrelas. Hoje, LeBron James e Stephen Curry são mais importantes para a NBA que Lakers e Golden State por uma lógica muito simples, o novo público consumidor vai seguir as estrelas, e não as franquias. E mesmo para quem tem sua franquia do coração, o jogo aonde estão as estrelas será uma atração à parte.

A Fórmula 1 demorou, mas também aprendeu, (falei sobre o assunto nesse texto), e há três temporadas vem dando mais atenção para os pilotos (e mostrando suas caras, não apenas capacetes), do que para as escuderias. O interesse do público mais jovens por Lando Norris e Charles Leclerc já é uma realidade.

E por fim temos a própria conexão entre os esportes tradicionais e os esportes virtuais. Cristiano Ronaldo é hoje o garoto propaganda e player de Free Fire enquanto Neymar ganhou uma versão digital dele mesmo para fazer parte do jogo Fortnite em ação patrocinada pela Puma. 

 

Anúncio do Neymar em Fortnite

Propaganda do Cristiano Ronaldo para a Free Fire


Não só o futebol, mas o entretenimento como um todo passa por uma importante transformação para se adaptar a um novo cenário no qual a forma de receber conteúdo e interagir com ele mudou drasticamente. Até os anos 90, com rádio e tv dominando a mídia no país e o futebol tendo lugar cativo no horário nobre, chegar ao consumidor não era uma preocupação dos clubes. Agora o jogo é outro, a concorrência por entretenimento aumentou e a disputa não é entre assistir um esporte ou outro, mas entre ver um jogo, um filme, uma série um game, uma live, um show. Todos eles estão a um botão de distância. O principal rival do Real Madrid não é o Barcelona, é League of Legends.


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