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Somos todos covardes (1)


Um entre os inúmeros pontos positivos que a era digital proporciona é a possibilidade de interação e proporcionar um conhecimento sem limites. Em segundos sabemos tudo o que acontece no planeta, uma vez que nós próprios somos, além de leitores, criadores de conteúdo. A opinião, que há dez anos ficava restrita ao grupo de amigos e familiares, hoje pode tomar proporções literalmente globais. E uma simples opinião, com a chegada da era digital, se tornou um poder gigantesco, extremamente democrático e perigoso. A mesma opinião que em julho de 2013 levou milhões de brasileiros as ruas em uma manifestação genuína e inspiradora, também fez atiradores radicais executarem, a sangue frio, jornalistas de um pequeno jornal francês.
                O ser humano descobriu, com a era digital, que poderia falar e ser ouvido e passou a utilizar todo esse poder sem nenhum curso, treinamento ou capacitação. O resultado dessa experiência é uma análise antropológica triste e desanimada de nós mesmos.
Não é preciso ir longe para comprovar este fato. Em verdade, é necessário apenas mover o dedo em uma tela que desliza até o infinito desbravando status, personalidades e aberrações. Façamos um simples teste:




Pelo Google Trends, selecionei cinco termos e os filtrei num período de trinta dias para ver quais eram os mais pesquisados no Brasil. Bbb, novela, futebol, Petrobras e cultura. A ordem dos mais pesquisados segue esta mesma sequência, ou seja, o brasileiro dá muito mais atenção ao que vai acontecer com o comendador do que um desvio de bilhões de reais de dinheiro público. O dado não busca fazer nenhum pré-julgamento, é apenas um fato, uma realidade de conhecimento geral.
Até aí a opinião não é expressada, pelo gráfico compreendemos apenas o nível de importância e interesse dos fatos para o cidadão. A realidade se revela assustadora quando esse mesmo cidadão passa de um espectador passivo para um escritor ativo, que descobre na internet o poder e a abrangência que a opinião pode gerar. E aí temos duas formas de perceber um mesmo problema; a primeira, é o comportamento do próprio indivíduo, que camuflado pela tela de um computador, expressa sua opinião avaliando única e exclusivamente o seu ponto de vista e a sua realidade. E a segunda é esse poder ampliado, quando pseudo-celebridades ganham popularidade e distribuem sua opinião sem critérios e muito menos conhecimento.
                Sobre a primeira questão, o principal questionamento que se faz é a verdadeira transformação que esta revolução digital proporcionou: as conversas de barzinho somente tomaram uma proporção maior, ou o anonimato ou distância que a internet propicia oferece a possibilidade de falar o que pensa, sem nenhuma consequência.
                Pessimista, acabo por concordar com a primeira opção e por assim pensar, entendo a internet e espaços para discussões, como um retrato real da sociedade que os utiliza. Faça você mesmo o teste, abra uma página de uma notícia de teor popular e conhecimento público e dirija-se a seção de comentários. O que verão a seguir será um festival de opiniões diversas, falta de tolerância e respeito, palavras de baixo calão, ofensas gratuitas e nenhum conhecimento profundo sobre o tema discutido. Esse comportamento abusivo dos usuários me faz pensar se os comentários seriam os mesmos se a situação fosse reproduzida na vida real. Reunir em um local um interlocutor que noticia o fato e todo o grupo de pessoas que comentaram a matéria. As opiniões seriam as mesmas expressas na internet? As ofensas seriam mantidas? Provavelmente a conversa frente-a-frente resultaria em um diálogo mais compreensivo em que os interlocutores pensariam duas vezes antes de ofender a mãe do indivíduo que expressou opinião contrária.
                A questão é que o exemplo acima não muda em nada a questão em si. Quem é então o verdadeiro ser humano por trás das palavras? O falastrão da internet ou receoso ao vivo? Por que a tolerância que – as vezes - temos em uma conversa de bar, não é a mesma no online? E se essa intolerância percebida na internet partisse para o off-line, existiria sociedade? Tudo isso leva a crer que é a covardia humana que mantém a sociedade viva. E o mais triste é perceber o quanto somos podres por dentro, onde uma simples opinião contrária é motivo de insultos, xingamentos, e em casos extremos, degolações e linchamento público. Uma barbárie.
                O mundo antigo é lembrado hoje pela barbárie, pela opressão religiosa. Naquele tempo pensar diferente do Estado ou da igreja significava morte por decapitação, ser lançado aos leões ou queimado na fogueira. O que todas essas atrocidades tinham em comum? Eram eventos de entretenimento, organizados em praça pública ou em arenas para a massa, o povo assistir e se divertir. Era circo.
                Hoje nos dizemos evoluídos e que esses episódios não existem mais na sociedade atual. Discordo! Menos de 100 anos atrás um ditador maníaco de um dos países mais desenvolvidos da época declarava guerra ao mundo por se intitular de raça ariana. A sociedade não evoluiria em tão poucos anos para sua plenitude em um processo que, desde o surgimento da vida vem levando milhões de anos. Permanecemos os mesmos bárbaros que vibravam com gladiadores enfrentando leões em arenas, o que mudaram foram os meios. Se antes essas barbáries eram em praça pública, hoje elas acontecem na TV, no rádio, em programas de apresentadores que tratam crimes como negócio. Se hoje é proibido lutar até a morte, inventamos o bullying, a discriminação, a intolerância. O que importa é a minha opinião prevalecer e que prove para o outro que eu estava correto! Mesmo que para isso seja preciso insultá-lo anônima e gratuitamente ou promover um holocausto humano. A única diferença é a quantidade de pessoas que a tua opinião vai influenciar.

 CONTINUA...

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