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Meu mundo perdido




É curioso como os primeiros traços da infância persistem para o sempre dentro de cada um de nós. Dizem os psicólogos que é nos primeiros anos de vida que grande parte da nossa personalidade é formada. E que durante a infância e adolescência que ela é moldada por influências externas e internas. Vindo de uma casa de professores, onde livros didáticos eram como brinquedos na estante, a influência destes para a minha personalidade foi um pouco diferente.
               Sempre gostei de literatura, mas nunca fui um bom leitor. Apesar de todos os fascínios que um bom livro proporciona, ainda acho uma arte de prazer demorado. Talvez por isso a preferência pelo cinema, que a meu entender proporcionam emoções semelhantes – ou maiores? – em menos de duas horas. Outro ponto que pode ter levado a essa percepção é que, como dito anteriormente, eram praticamente todos livros didáticos. Nenhum romance, alguns livros de contos, um ou outro de crônicas. Na biblioteca da casa – sim, tinham tantos que em uma reforma na garagem da casa, um espaço foi criado só para eles -, era fascinante ver enciclopédias de capa grossa, com folhas ilustradas e muitas imagens. Acredito que não tenha lido nenhum deles, mas folheado todos. Principalmente os atlas.
            Com um pai professor de geografia e história, atlas era o que não faltava. Alguns mostrando detalhes do Brasil, outros do mundo, outros do universo. Foi por meio destes livros que começava a entender, ainda que ingenuamente, o infinito do universo e a insignificância do nosso planeta diante disso.
            Todo esse processo, inconsequentemente desenvolvia muito mais uma linguagem visual do que escrita, o que levaria a influenciar e muito as futuras decisões a serem tomadas. Tanto é que, diante de tantos mapas, lugares, países e bandeiras, optei por desenvolver o meu próprio mundo.
               Em um tempo arcaico onde não existiam computadores, comprei um caderno de 96 páginas, um lápis e comecei a escrever e desenhar como seria esse mundo. Tenho ainda na cabeça o mapa cartográfico desse mundo, seus continentes e suas características. O mundo misturava muito da inocência de uma criança – ou pré-adolescente – em desenvolvimento, a referências da tv e dos noticiários e da época. Lembro então que inevitavelmente, o país mais rico do meu mundo foi desenhado onde na Terra fica a América do Norte, e os países menos desenvolvimentos, onde fica a África.
               Contudo, lembro também que me preocupava em deixar este mundo o mais diferente possível da Terra. Cada país tinha suas características específicas, como população, capital, área, clima, relevo, principais atividades econômicas e até traços culturais. O planeta contava inclusive com um túnel de sei lá o que, que levava humanos para visitar o satélite mais próximo – tinha escrito detalhes como tempo de viagem, distância e como era a colonização desse satélite -.
             Com o planeta criado, meu segundo passo foi trabalhar na sua pré-história. Ou seja, como o planeta se formou, como foi seu desenvolvimento, que guerras aconteceram, enfim, como aqueles habitantes imaginários chegaram aquela realidade a qual havia imaginado. Lembro que a partir de cada fato histórico imaginado, alguma coisa ou outra era modificada no mapa atual – daí a importância de ter feito tudo com um lápis -. Meu mundo então vivia em transformação, uma perda de terreno ocasionada por uma guerra inventada aqui, uma nova cidade para homenagear uma personalidade história recém criada lá, e o mundo seguia sua constante evolução.
           Com o tempo, cada vez mais adentrava em detalhes do planeta, definindo as características e costumes de seus povos. No que acreditavam, o que defendiam, que língua falavam, como o clima influenciava suas vidas, etc. Tudo era anotado ou por meio de texto, tópicos, ou, se fosse necessário, desenhado em mapas ilustrativos.
             Meu próximo passo era desenhar o ambiente fora deste mundo, mergulhando espaço afora. Era. Infelizmente esse caderno seu perdeu. Procurei de todas as formas encontrá-lo para rever os mapas, relembrar os nomes e até, por que não, dar sequência no meu projeto de mundo. Lembro dele hoje com uma nostalgia muito grande, de um tempo em que passava noites brincando de deus, desenhando mapas, criando povos e colonizando satélites.

               É curioso perceber que meu mundo não era perfeito. Era um mundo capitalista, tinha desigualdade social, divergência entre povos, acúmulo de riquezas, guerras históricas, desastres naturais, etc. Percebe-se que a influência do mundo Terra era grande. Mas acredito que não foi esse o propósito de criá-lo imperfeito. Se o tivesse criando assim, então não teria graça continuar desenvolvendo-o. Era esse o objetivo da brincadeira, evoluir aquele mundo. Ter a plenitude como horizonte. Queria que aqueles povos aprendessem por si mesmos, distinguissem o certo do errado, que, aos poucos, alianças pudessem ser criadas e fronteiras destruídas. Que depois do período de conflitos por território, chegasse a era das uniões, onde características iguais aproximassem uma cultura da outra. Onde o coletivo reinasse, e onde os primeiros povos que acordassem para esse novo tempo, fossem os primeiros a alcançarem a paz.

            Pensando melhor, talvez tenha sido bom que esse mundo tenha se perdido. Talvez ele não seja tudo isso que imaginava. Talvez insistir na construção daquele mundo fosse uma perda de tempo lastimável. Afinal de contas, o meu mundo foi colonizado por humanos, uma raça brilhante e desprezível, que seguirá para todo o infinito, como uma incógnita flutuando no espaço e tendo sempre a plenitude como horizonte.

"Longe, longe, longe, aqui do lado..."



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