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Lei da oferta e procura e a sustentabilidade no mercado atual



O mercado diz que o cliente tem sempre a razão. Mas será mesmo que essa máxima é verdadeira? E que papel tem o marketing dentro de uma economia cada vez mais global e insustentável?



Durante essa pandemia uma frase que não vou lembrar o autor rolou solta pela internet: “as pessoas estão comprando apenas o essencial e necessário e a economia está parando”.

É obvio que a frase é muito oportunista e não reflete a realidade e gravidade do momento. Setores como turismo, serviços, cultura e lazer, por exemplo, que, apesar de não serem de primeira necessidade, tem fator importante na vida humana. Isso quem nos dizia era Maslow ainda na década de 50. Após atendermos nossas necessidades fisiológicas, tendemos, naturalmente a seguir em busca de novas realizações.

Porém a frase também trás um fundo de verdade e que merece a reflexão. Será mesmo que a forma como consumimos produtos e serviços é, de fato, necessário e vem para atender algum os níveis de necessidades de Maslow?

Quem dá a resposta para essa pergunta é a lei da oferta e procura, segundo a qual quem define se um produto ou um negócio é bom e necessário é o cliente. Ou seja, se houver demanda por esse produto, minha empresa está simplesmente atendendo a uma necessidade de um público carente de uma solução.

A atual era das startups sabe muito bem desse contexto. Com a ascensão da tecnologia, a ordem é facilitar a vida das pessoas e resolver suas dores. Sob este lema o Google surgiu para organizar as informações na internet, o Uber para levar pessoas de um ponto a outro com segurança e preço baixo e o Ifood para você pedir comida sem sair de casa. Todos problemas reais que essas novas empresas buscaram resolver. Até aí tudo bem, mas será que todos os produtos e serviços se encaixam, de fato, dentro da lei da oferta e procura onde quem define o que é bom e útil é o cliente?

Leif Andersson é um geneticista sueco pioneiro no crescimento genético de porcos, galinhas e vacas para produção maior de carne. Essa prática, comum hoje no mundo todo, possibilitou ofertar carne mais barata a todo mundo, uma vez que o custo de produção reduziu. Com isso, o quilo do peito de frango tornou-se viável para milhões de famílias no mundo todo e como a produção é massificada, ofertá-lo em muito mais lugares que frangos produzidos de “maneira tradicional”.

Na hora de colocar na balança, ao comparar os R$ 20,00 do preço do peito de frango industrial com os R$ 40,00 do peito de frango orgânico e criado em fazenda, parece lógica a escolha pelo primeiro. O que não consta na embalagem é o confinamento total dos animais durante toda a sua vida, o descarte (leia trituração) dos pintinhos nos primeiros dias de vida e a modificação genética em todo o corpo do animal que, em dado momento, não permite nem que ele consiga erguer as patas.
Porém para a lógica do mercado, a conta faz sentido e é justa. O que importa e o que caracteriza o sucesso de uma empresa hoje é a hora da verdade no supermercado, quando o consumidor escolhe seu produto e o retorno financeiro que este estrega a empresa. Ou seja, se o frango geneticamente modificado dá lucro, este está validado pelo mercado e as práticas empregadas pela empresa também.

O outro exemplo é da Coca-Cola. A empresa é referência mundial em marketing com o case secular do seu produto que durante mais de cem anos depois, nunca deixou de liderar seu mercado. Os atributos desse sucesso retumbante é o sabor inigualável da bebida e a propaganda milionária e ininterrupta em todo o mundo que gera desejo e identidade pela marca. É verdade que esses fatores têm extrema importância em seu sucesso. Mas muito pouco é discutido sobre a cadeia de distribuição da empresa e principalmente, o seu maior fator de sucesso: o preço. Você dificilmente vai encontrar um local onde o preço de uma bebida saudável (com exceção da água), custo menos que um refrigerante (as que custarem, com certeza não serão saudáveis), ou que não tenha uma lata de Coca-Cola para vender. Assim, na hora da compra, a garrafa de 2 litros custando seis reais em comparação com o suco integral que custa doze, sai muito mais em conta. Novamente, não consta na embalagem os riscos de diabetes e aumento de peso, o enfraquecimento dos ossos e dentes, o aumento da pressão arterial e até riscos de câncer. Mas na equação financeira e do mercado esses fatores não entram na conta. Na lógica, se meu produto está sendo oferecido, as pessoas estão comprando e satisfeitas e eu estou recebendo lucro com isso, meu empreendimento está validado. Tão validado que cenas de pais oferecendo refrigerantes e hamburgueres do McDonalds a crianças são vistas com naturalidade nos dias de hoje. Sem causar nenhum espanto aos que assistem.



A última defesa para com essa industrias é a importância econômica e social das mesmas. Como acusar grandes conglomerados que trazem prosperidade as regiões por meio de empregos e impostos? Se é ruim com eles, seria muito pior sem eles.

Não há nenhuma dúvida que empresas são importantes e necessárias para o desenvolvimento de regiões. Nenhuma. Porém, para que tenhamos um jogo franco e bem jogado, já passou da hora de empresas reverem seus conceitos e se adaptarem as novas realidades. Bem verdade, elas já vem fazendo isso, e é verdade também que elas não estão com muita pressa de mudar um cenário tão lucrativo e interessante como o atual.

Malcolm Gladwell comenta em “O Ponto da Virada” que, por mais que os hábitos humanos venham mudando ano a ano, eles só ganham força e velocidade quando grande influenciadores, empresas e governos tomam para si o protagonismo da causa. Talvez o melhor exemplo dos últimos anos seja a Apple com o seu Iphone, que é tido ainda hoje como o primeiro smartphone do mercado. A verdade é que já existiam opções de smartphones muito anteriores a 2007, mas nenhuma delas ganhou a repercussão e principalmente o estrondoso marketing feito pela Apple, que transformou seu novo produto em desejo de consumo mundial.

Sob essa lógica uma empresa nunca terá escalabilidade se não entrar em grandes redes, ter uma boa plataforma na internet e principalmente se não tiver marketing por trás. É o marketing e os investimentos por trás do seu produto que definem se ele terá o sucesso desejado ou não.


Como mudar hábitos?

A Uber foi fundada em 2009. E a ideia de mudar a forma como as pessoas se movimentam parecia promissora, mas tinha um enorme desafio. Convencer pessoas a mudarem seus hábitos. Esse ato pede muito mais que um excelente serviço, uma ótima plataforma e um custo baixo, ela depende da boa vontade das pessoas em testarem seu serviço e das mesmas perceberem que, além de uma vantagem, aquilo é algo relevante a se apostar.

E aí entra o papel do marketing: entregar confiança e o sentimento de novidade para as pessoas. Em um primeiro momento o consumidor não usa o Uber porque precisa do serviço. Usa para testá-lo, para sentir a experiência e avaliá-lo. O hábito só vem bem depois, quando as situações do dia a dia pedirem uma segunda vez e outros fatores aleatórios se encaixarem, como a primeira experiência ter sido boa, perceber que outras pessoas usam, lembrar a existência da marca no momento da necessidade, perceber a própria necessidade, não tomar outra opção que resolva o problema, entre outros.



A Netflix é outro exemplo. Mesmo nascendo de pequenas inovações para deixar a vida de seus clientes mais fácil, a longa trajetória de ouvir falar da plataforma, passando por você assinar o serviço e finalmente transformá-lo em um momento da sua rotina é gigantesca. E ela não daria nem o primeiro passo sem a sensação de confiança e de novidade que o marketing transmite.

Porque foram a Netflix e a Uber e não a Hulu! ou a Cabify que em questão de poucos anos tornaram-se empresas bilionárias e presentes em praticamente todos os países do ocidente? Existem várias respostas para isso, mas uma delas foi os passos largos que o marketing as fez dar, com a intenção de torná-las referências de segmento antes da concorrência. E óbvio, muito, muito investimento embutido.


Novos Horizontes

Os exemplos de Uber e Netflix mostram como hoje está sendo cada vez mais rápido para novas empresas se imporem em um mercado. A internet quebrou as fronteiras geográficas e o entrave da distância deixou de existir. Porém, ainda mais difícil que as fronteiras geográficas, estão as fronteiras da informação. Parece mais fácil para uma empresa abrir operação em outros países do que seus consumidores conhecerem e entenderem sobre a gestão e práticas que ela emprega.

A Uber, desde a sua fundação, se envolve com polêmicas. Desde acusações de assédio por parte de funcionários até fraudes e roubo de informações de outras empresas. São atitudes ilegais e que representam falta de ética e concorrência desleal. Porém, mesmo assim, apenas uma mínima parcela de seus usuários desinstalou o aplicativo e migrou para a concorrência. O motivo disso significa que o usuário da Uber não se importa com o modo como a empresa gere seu negócio, desde que este esteja funcionando perfeitamente em seu smartphone? Ou que todos esses casos foram muito bem encobertados e só tiveram repercussão em pequenas bolhas?

Como citei Gladwell anteriormente, nossos hábitos só ganham força e velocidade quando grandes influenciadores, empresas e governos tomam essa atitude. E no caso das acusações da Uber (e de qualquer outra empresa), pouco se viu esses assuntos serem debatidos em grandes grupos. Muito pelo contrário, a empresa segue sendo vista como um fantástico case de sucesso e inovação.

A questão é que já passou do ponto do consumir perceber e fazer valor do seu poder de influência para aceitar ou não as imposições que o mercado oferece. Segundo a própria lei do mercado, são próprias decisões do consumidor que definem e validam o sucesso de uma empresa. E assim sendo, são os produtos que você tem em sua estante de casa e que compra continuamente que mantém empresas boas ou empresas ruins produzindo.

Já olhou para sua estante e avaliou quais práticas você sustenta? 

Porém, a minha ou a sua mudança pouco vão influenciar no mercado como tudo. Novamente precisamos de vozes e representantes que falem que nos importamos com boas práticas de mercado, de sustentabilidade e que não aceitamos qualquer violação de direitos humanos perante as marcas que consumimos. E entendo que essa mudança deva partir justamente do próprio mercado.

Se é alto o número de empresas que agem em desacordo com as regulações do mercado, é alto também o número de empresas que se importam com essas práticas e promovem uma disputa leal de concorrência, qualidade de vida para seus funcionários e principalmente produtos e serviços sustentáveis para seus clientes. Não vejo outro caminho senão a união dessas empresas por um mercado mais justo e bom para todos.

Já passamos da fase de avaliar sucesso empresarial analisando o lucro obtido no ano e comparar com o crescimento do ano anterior. É obvio que ele também é importante, mas além de dinheiro existem outras fontes de receitas e recursos que precisam estar no radar dos empresários para os próximos anos.

Tenho fé que essa mudança já começou e são vistas boas atitudes e ações mobilizando empresas por todo o mundo. Mas podemos acelerar esse processo. Quanto mais empresas que pensam igual se unirem para discutir e trocar práticas de sustentabilidade e qualidade de trabalho, mais forte e competitivo estes mercados ficam. Entendo que isso não é pedir nada demais, ou um ato de bondade desses empresários. Mas sim colocar as rodas no eixo e seguir um caminho que por muito tempo pareceu confuso. O sistema capitalista em que vivemos entregou muita coisa boa para o mundo, como também muitas tragédias. Não precisamos ficar alimentando esses dois caminhos, já seguimos por tempo demais esses dois rumos. Que tomemos então o melhor que ele nos oferece e tentemos evitar o que vem de pior. Infelizmente a lógica de quanto mais crescimento, menos pobreza, apesar de lógica é insustentável. Quanto mais desenvolvimento sustentável e amparo aos mais necessitados, me parece um caminho mais sensato. Bom para as empresas, bom para as pessoas, bom para todos.

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