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Consumismo em tempo de coronavirus

Esse tempo de quarentena vem trazendo boas discussões sobre o que é essencial ou não para as nossas vidas. Independente das empresas que seguem abertas e das que estão fechadas, vale um olhar pessoal para cada um de nós e perceber se, de fato, tudo o que temos em casa é justificável e faz algum sentido em nosso cotidiano, ou foram apenas impulsos externos que alimentaram um desejo de compra.



Vivemos sobre a ótica de um mercado movido pelo crescimento a qualquer custo. A conta é simples, mais consumo reflete em mais crescimento econômico, que gera mais riqueza e permite as pessoas a consumir mais. A roda gira dentro do consumo, e quando uma situação como a que estamos vivendo agora impede essa roda de girar, temos o caos instaurado.

Apenas por esse argumento é aceitável ver essa situação como um alerta e questionar se essa lógica faz sentido e aonde ela vai nos levar. A lei da procura e oferta é clara em sua concepção. Se eu tenho algo que muitos necessitam, nada mais justo que oferecer meu produto e com o lucro de minhas vendas, ter direito a comprar aquilo que também necessito.

Esse processo se faz vivo desde o tempo do escambo e norteia lógica de mercado atual. E não há nada de errado nele.

No genial O Clube Da Luta (Fight Club, 1999), de David Fincher, os dois protagonistas discutem sobre o consumismo moderno.


A corrida dos ratos

O que começa a trazer questionamentos é quando essa lógica ultrapassa o ponto da necessidade humana e começa a ofertar soluções que atendem a desejos ou a idealizações que não são naturais para o consumidor. Ou então criadas externamente.

Pegamos um exemplo banal de um salgadinho de farinha de milho infantil: sob a ótica da necessidade humana ao qual ele foi criado (alimentação), ele não tem serventia nenhuma. Nenhum ser humano (principalmente crianças), é capaz de viver toda a sua vida a base de salgado infantil. Se viver, terá sérias complicações de saúde.

Sendo assim o produto precisa de posicionar como uma opção de lazer, e passa para a categoria de estima e desejo. No entanto, o próprio produto, por si só, não consegue provocar esse desejo de compra nas pessoas. Não bastaria colocar o produto na gôndola do mercado e esperar que as pessoas corram comprar. E sobre esse prisma, quando produtos como este são produzidos, entram no custo de viabilidade economia uma significativa verba de marketing e de propaganda. Sem esses dois, dificilmente o produto geraria demanda, pois pela lógica de vendas, primeiro ele precisa gerar desejo, para depois ser consumido.

“As coisas que você possui acabam possuindo você”
Tyler Durden

Essa prática faz parte da lei do mercado, pois uma vez que um produto tem demanda, ele é vendável e se auto sustenta, mesmo que essa demanda tenha sido criada. E sob essa mesma lógica, o fato de os salgados de milho seguirem presentes nas prateleiras de mercados é única e exclusivamente “culpa” do consumidor. Uma vez que é ele que procura pelo produto nas gôndolas.

E aí está o cerne da questão. O consumidor deixa de ser o motivo e se torna a causa da venda, esquecendo que é o marketing o fator que cria e propulsiona esse mercado. O produto só é vendável porque a própria indústria faz que ele seja vendável. Se a propaganda parar, as vendas diminuirão e se o produto sair das gondolas, o produto acabará. Caso isso aconteça, dificilmente vamos ver multidões nas ruas pedindo o retorno dos salgados de milho ou cercos nas fábricas implorando a retomada da produção. O produto não é necessário. É uma invenção, uma armadilha do próprio mercado para gerar receita para si mesmo, além de justificar ser o consumidor o real motivo para o produto existir.

Um salgado de milho é um exemplo simples de como essa lógica funciona, mas existem outros um pouco mais complexos, como por exemplo o mercado da moda.

A função básica da roupa, além de cobrir as “vergonhas” impostas pela crença religiosa é nos proteger do frio e em uma segunda escala fazer conforto as nossas rotinas e hábitos. A moda descobriu que em uma terceira escala a roupa também pode ser responsável por nos diferenciar entre classes sociais, criar identidade e ditar etiquetas conforme situações aos quais estamos inseridos.

Todos podemos combinar que no formato atual como a sociedade se encontra, essas três etapas têm significância e importam para seus consumidores. Porém, existe uma quarta etapa, que coloca a indústria da moda no mesmo patamar do salgado de milho: a retroalimentação.
É praticamente um impeditivo social você usar a mesma roupa por dois dias ou três dias seguidos, ou por duas estações seguidas. As temporadas de moda ditam as tendências da próxima estação não porque gênios estilistas avaliaram o avanço sociológico e ajustaram suas peças para o presente momento, mas porque as lojas precisam vender. E se no ultimo verão a cor era o amarelo, neste será o azul. A mensagem é: seu armário precisa de uma camisa azul. E novamente a armadilha está posta e engatilhada.

Industrias de eletrônicos, móveis, eletrodomésticos e computadores se aproveitam da obsolescência programada para fazer seus produtos girarem. Muitos podem dizer que é dessa forma, e apenas dessa forma, que as empresas podem criar mais, inovar mais, gerar mais empregos e renda e entregar mais valor em seus produtos. Talvez se não fosse assim não estaríamos no Iphone 11, mas sim ainda usando o 5.

A questão é, precisamos mesmo estar no Iphone 11? Qual a pressa dessa corrida interminável para o último modelo, mesmo sabendo que ele nunca irá chegar?



Minimalismo

Existe uma cultura, ainda pouco conhecida (e muito menos praticada), chamada de minimalismo. Ela se caracteriza em viver a vida com apenas o essencial, se tratando de aparatos materiais ou até mesmo atividades. Os adeptos dessa filosofia valem-se dela de todas as formas, muitos, inclusive, abrindo mão de sua casa própria por um modo de vida mais nômade. Mas não há a menor necessidade de chegar a esses extremos. Inclusive o fato de ver o minimalismo como um extremo talvez seja um dos principais erros dessa comparação.

Se tiver algo de bom que vamos absorver desse momento em que vivemos, que seja o nosso olhar mais minimalista e preocupado de fato com o que é essencial para a vida humana. Definir para si mesmo o que, de fato é essencial para sua existência e o que é supérfluo. Não há a menor possibilidade de alguém, além de você mesmo fazer essa avaliação. Abra a sua dispensa, as gavetas do seu guarda-roupa, as prateleiras da sala, os móveis da casa e questione. Aposto que muita coisa que encontrar será desnecessária ou trivial.

O minimalismo surge como uma corrente contrária ao consumismo. Diferente desta última, ele não gera vantagens para a economia, não está preocupado com o progresso do país e muito menos com o crescimento do PIB. Na verdade, a cultura minimalista não impõe nada a ninguém, apenas nos faz refletir sobre o que de fato é essencial e necessário para as nossas vidas.
E isso não significa uma estagnação da economia, mas uma consciência maior do consumidor e um repensar de hábitos. Aonde a sua decisão e a sua liberdade falem mais alto que as impostas pelo mercado.

Mais um breve trecho de Clube da Luta

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