A Gillette é uma das marcas mundiais que mais tem conexão com o público masculino e uma das poucas que viraram sinônimo do produto, afinal, ninguém compra lâmina de barbear, todo mundo compra Gillette. A Gillette também é uma marca que poucas vezes se reposicionou. Como líder de mercado por décadas, suas ações de marketing sempre ditavam o mercado e ainda ditam.
Mas como toda a empresa centenária que se mantém viva até hoje, está precisa acompanhar as transformações sociais e culturais da sociedade. Então, se há 50 anos era comum vermos uma propaganda da Gillette de crianças se barbeando, hoje, é consenso que uma campanha com esse teor não seria bem-vinda.
Também sabemos que muitas de suas campanhas até pouco tempo apresentavam um teor machista. Isso não é demérito da marca, mas do mercado. O machismo na propaganda era comum há até pouco tempo, assim como a hiper-sensualização de mulheres em comerciais de cerveja ou de modelos com corpos impossíveis em comerciais de produtos de beleza.
Essas campanhas ainda existem, mas é visível que acontece um movimento contrário ao de atrelar estereótipos em propagandas. Por exemplo, a própria Procter & Gamble, empresa controladora de Gillette, fez isso recentemente com outra marca de seu portfólio: Always. Na sua mais recente campanha, a multinacional resolveu debater o estereótipo de que mulher é mais frágil e delicada com a campanha “Like a Girl”. Esta campanha foi lançada em 2015 e foi um sucesso mundial.
Além de Always, várias outras marcas vêm nessa toada. O exemplo mais claro talvez seja de Dove, com a campanha de 2013 intitulada “Retratos de Uma Beleza”. Os comerciais de cerveja abriram mão das mulheres de biquíni dos anos 90 e 2000 e atualmente vem focando muito mais no humor, no esporte ou na música. A Heineken, inclusive, em sua última campanha de caráter mundial “When You Drive, never Drink” usou como mote o fato do dirigir conscientemente, tendo como garoto propaganda o piloto de Fórmula 1 Nico Rosberg recusando beber a cerveja.
É importante comentar que essas ações de adaptação a uma nova sociedade não ocorrem apenas da porta para fora. Existe uma visível atenção das empresas a assuntos atuais como a desigualdade de salários entre homens e mulheres, a diversidade e a qualidade de vida de seus colaboradores. Também temas como sustentabilidade, consciência global e ambiental são cada vez mais frequentes dentro desse contexto. Hoje, uma empresa que não segue padrões ambientais ou sociais provavelmente terá seus dias contados.
E então chegamos na nova campanha de Gillette “Be The Best You”, que não soa como um reposicionamento, mas apresenta um manifesto público sobre masculinidade tóxica, ou em resumo, sobre os riscos do machismo, tanto para mulheres, em casos extremos de violência e abusos, como para os próprios homens, em sua obrigação perpétua de não demonstrar sentimentos ou ser o melhor em tudo sempre, por exemplo. Assista o vídeo abaixo:
Ao menos era o que a campanha esperava. Apesar de elogiada e abordando um tema em que, ao que tudo indicava, traria um consenso sobre sua importância, a resposta do público não foi a esperada. Atualmente o vídeo publicado por Gillette conta com 26 milhões de visualizações, 712 mil menções positivas e 1,2 milhão de menções negativas.
É fato que não existe campanha que será unânime e é fato também que qualquer propaganda, seja a mais simples possível vai gerar buzz positivo ou negativo. Ainda mais uma divulgação envolvendo uma marca global e um assunto que não diria polêmico, mas intocado como o machismo, que aos poucos vem sendo debatido e ainda (como a própria repercussão da campanha vem mostrando) é um tabu gigantesco da sociedade.
Também é fato que a propaganda não é perfeita e o discurso oferece margem para controvérsia. Mas em um resumo, a mensagem é muito clara e fácil de entender para aqueles a veem com bons olhos.
Então, porque a maioria está criticando o vídeo? Existem várias conclusões a se chegar diante desse cenário. E uma delas se mostra muito preocupante: que reações como essa influenciem uma atual agenda positiva das empresas, que até os dias atuais chegava a ditar e influenciar importantes mudanças culturais (vide as citadas Always e Dove).
Isso inclusive é uma novidade da nossa atual era e uma característica total do marketing 4.0. Atuar pelo propósito, ter uma causa a ser trabalhada e ambiciosamente, mudar o mundo. Entre as principais “reclamações” dos seguidores, vimos um discurso de que “a Gillette deveria se preocupar em vender e parar de ‘ditar regra’”, ou sendo acusada como moralista. Acontece que atualmente, somente vender não bastar. Faz parte das empresas se envolver e interpretar as tendências da sociedade. E o apelo de Gillette é totalmente assertivo e atual. Obviamente, esse discurso tem que ser traduzido em práticas e uma consciência no mínimo interna sobre o tema (e aqui é justo uma cobrança à empresa por um posicionamento mais enfático nos próximos períodos).
Outra conclusão é que o vespeiro tocado por Gilette é mais fundo e escuro do que se imagina. Muitos de seus consumidores ainda não possuem informação sobre os malefícios da masculinidade tóxica ou a confundem com assédio. E estes ainda são a maioria. Não há nada de errado, ao contrário, engrandece ainda mais a atitude da marca e mostra o quanto ela é necessária.
A Ambev, com a marca Skol no ano passado optou pelo bom humor para se reposicionar, e acabou passando despercebida. Foi uma atitude simples e que não teve a intenção de gerar discussões sobre o tema. É respeitável, mas pelo tamanho da Ambev, essa mudança de discurso, poderia trazer mais benefício para a sociedade.
Em suma, é um caminho sem volta, empresas influenciando uma nova sociedade e a sociedade ditando o posicionamento das empresas. Não existe via única e ambos os grupos dependem um do outro. Obviamente a construiu dessa ação não ocorreu simplesmente porque alguém entendeu ser a melhor coisa a ser feita, mas porque pesquisou e ouviu seu público. E isso é ótimo. Sinal que ainda trazemos indícios de um mundo mais justo e diversificado. E digo ainda porque os novos movimentos da sociedade mostram que existem oceanos azuis para públicos que não compartilham de um pensamento mais amplo sobre esses temas e acreditam em valores conversadores e muito vinculados com religião. Empresas que visualizarem esse cenário tem um ótimo caminho pela frente. Fica a dica.
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