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46º Festival de Cinema de Gramado: As Herdeiras; A Voz do Silêncio e Benzinho


Análise sobre os filmes vistos no 46º Festival de Cinema de Gramado:



As Herdeiras (Las Heredeiras), de Marcelo Martinessi

Vencedor de 6 Kikitos em Gramado.
Melhor filme estrangeiro, melhor direção de filme estrangeiro, melhor atriz de filme estrangeiro para Ana Brum, Margarita Irún e Ana Ivanova, melhor roteiro de filme estrangeiro e prêmio especial do Juri e prêmio do Juri Popular para filmes estrangeiros.

Nos cinemas



Chela (Ana Brun) e Chiquita (Margarita Irún) são duas mulheres de meia idade que vivem juntas, porém diante de dificuldades financeiras optam por vender alguns móveis da casa. A situação se agrava quando Chiquita acaba presa, por dívidas não cumpridas. A partir de então acompanhamos Chela, que começa a oferecer caronas a amigas e conhecidas.

Na produção paraguaia dirigida por Marcelo Martinessi, a história em si é o que menos importa. As viagens de carro de Chela, são plano de fundo para viajarmos ao interior dela própria, que se mostra uma tarefa nada fácil, diante do quanto ela – literalmente - se esconde, e do tanto de camadas a serem abertas. Os movimentos de câmera contidos e demonstram reclusão e angústias da protagonista. Chela é introspectiva, de pouco falar e dizer. Um contraste com sua sexualidade que parece transgressora, mas ao mesmo tempo reprimida.

Essa mistura de transgressão e repressão, inclusive, é o que dita suas escolhas. Uma vez que se permite dirigir cada vez mais longe pela cidade, mesmo sem carteira de motorista, mas que ao mesmo tempo opta por fazer uma rota pré-combinada um dia antes, para garantir que saberá o caminho. Uma mistura de libertação e compromisso. Os óculos escuros que usa talvez representem isso, uma vez que mostram certo grau de ousadia, também servem para se esconder, ou manter-se segura em si.
Parece que a protagonista busca certa libertação de algum passado desconhecido do público, mas que tal alforria tem alto custo e pesar. A vendas dos móveis talvez façam esse papel: ao ponto em que a casa vai ficando vazia com o decorrer das vendas – que ela observa escondida, de longe – também as vezes é difícil desfazer-se de móveis tão pessoais e que fazem parte de sua história.

“As Herdeiras” não traz respostas, apenas questionamentos. E em sua cena final talvez o principal deles, algo que faz parte de Chela, mas também de todos nós. O de abrimos mão de heranças que nos são dadas, para buscarmos a nossa própria, de maneira independente e provocadora. Custe o tempo que custar, custe a vida.



A Voz do Silêncio, de André Ristum

Vencedor de 2 Kikitos em Gramado
Melhor direção e de melhor montagem

Estreia nos cinemas: novembro



No longa, acompanhamos o cotidiano arbitrário de sete personagens. Além da excelente montagem, a fotografia e direção merecem destaques, muito pelo clima claustrofóbico e confuso que é construído durante toda a projeção. Todas as histórias se passam em São Paulo, e as cenas discorrem entre tomadas internas, que mostram os cotidianos dos personagens, para cenas externas, mostrando uma São Paulo cinza, de cimento e asfalto. Não é por acaso, o cimento frio e estático dos prédios faz alusão aquelas vidas que acompanhamos, que parecem incorporar a morbidez dos edifícios. Todos lutam para construírem seus destinos diante de todos os empecilhos possíveis, cada um de seu jeito, com a sua intimidade, escondidos perante prédios e pessoas.

A luz é sempre escura e crua, seja na sala bagunçada de uma mãe esquizofrênica, seja na fachada de uma boate, seja em um gabinete de televendas ou dentro de uma sala de rádio. Não há emoção, não há sentimento, não há vida. Há uma luta por sobrevivência, um caminho, mas um caminho sem gosto. É uma tentativa fria de um amanhã melhor, mesmo que durante o hoje este amanhã nem mesmo apareça, escondido atrás do cinza de milhares de edifícios e arranha-céus.



Benzinho, de Gustavo Pizzi

Vencedor de 4 Kikitos em Gramado
Melhor atriz para Karine Telles, melhor atriz coadjuvante para Adriana Esteves. Prêmio da crítica e prêmio do júri popular.

Nos cinemas



Benzinho acompanha o cotidiano de uma família carioca de classe média baixa e que vive momento decisivos, com o filho recebendo convite para jogar handebol na Alemanha, o pai (Otávio Muller) buscando novos investimentos para trazer sustento a casa e a mãe Irene (Karine Telles) formando-se no EJA para tentar posições melhores de trabalho.

No entanto a família é o plano de fundo para entrarmos na vida de Irene, a mãe que tem olhos para todos os quatro filhos, uma casa gritando por reformas, uma irmã que vem sofrendo com um relacionamento abusivo e o marido, que apesar de excelente pai, é um fracasso nos negócios.

Benzinho tem como grandeza o fato de Karina ser a mãe real dos gêmeos Fabiano e Matheus, que traz uma atuação, que quase nem é atuação, uma vez que as cenas dela com as crianças, são praticamente reais. A cena deles três tentando abrir a porta ou aquela em que escolhem roupas no quarto são provas disso. E o bom trabalho de Karine é ser essa mesma “mãe real” com os demais membros do elenco. Sua ingenuidade comove, seu amor comove e seu caos interno ainda mais.
Além do ótimo elenco, Benzinho conta com outros dois protagonistas: as casas aonde a história acontece. A casa atual da família, que tem ao lado uma nova casa em construção (para onde todos planejam se mudar), e a casa de praia.

As casas são retratos do que a família é, e a casa atual sofre com isso. Ela representa todos as dificuldades que tem que ser enfrentadas. Seja uma torneira estourada, seja uma porta que não abre ou uma rachadura na parede. Acontece que aqui os problemas não são resolvidos, mas menosprezados, ou no mínimo deixados de lado. Se a porta não abre, entramos pela janela, se a torneira não funciona, desligamos o registro, se a rachadura está muito grande, colocamos uma cortina por cima. O que importa nessas situações é eles contarem com eles mesmos. Eles são a casa.

E muito por isso, a perda do filho mais velho se mostre tão devastadora para Irene. E por isso também, a negação em vender a casa da praia. É lá que os melhores momentos em família acontecem. É uma fuga de uma casa desregulada, para uma com aparência mais coesa. Lá eles têm o mar, uma tira de areia e as crianças. As preocupações ficam na casa antiga. É lá também que o filme nos premia com uma das melhores cenas dos últimos anos. Dividindo a mesma boia, Irene e Fernando (o filho mais velho) se misturam em meio ao mar. Ao mesmo tempo que ele mostra-se descansando no colo da mãe, entendemos toda a dificuldade de Irene em “largar” o filho, eles são um ser só.





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