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Impressões



            
 


O Batman tinha um vilão chamado Duas Caras. Duas Caras era o alter-ego de Harvey Dent, um ex-promotor de justiça de Gotham, que teve seu corpo parcialmente queimado. Atormentado pela dor física das queimaduras e emocional, pois perdera também sua esposa, Dent assume seu lado criminoso e o então antes combatente do crime, torna-se um dos maiores vilões de Gotham. Sua característica era deixar o destino decidir o futuro de suas atrocidades, pelo cara ou coroa de sua moeda.
                Duas caras é um personagem de ficção, sua história é um mero esforço criativo para justificar a criação de um inimigo para Batman e forçar certo apelo emocional para o enredo da história. Mas a criação de Bob Kane e Bill Finger, assim como todos os excelentes vilões do mundo dos quadrinhos, leva consigo uma identidade incrível do mundo real.
               
                Questiono se hoje não chegamos a um ponto que “ser Duas Caras” seja uma atitude extremante normal e aceitável. Não me refiro a situações como acordar de péssimo humor, lavar a cara e forçar o sorriso para com os demais no ambiente de trabalho. Ou ser mais brincalhão em casa e usar-se de um tom mais profissional no trabalho. Mais do que correto, essas atitudes são necessárias para o bom convívio entre todos. Mas sim a dupla personalidade mesmo, ou a falta de personalidade, que podem muito bem ser vistos como sinônimos.
                Refiro-me ao “Duas Caras” do melhor amigo que aparece só nas horas boas. Ao Duas Caras que faz discurso de bom moço, cumprimenta todos na rua, e em casa desrespeita e bate na mulher. Que reclama do governo e da situação do país, mas sonega impostos e compra produtos falsificados. Que se diz sem preconceitos, mas adora contar piadas racistas. Que faz as partes de amigo próximo, quando só tem interesse em segundas intenções. Ou até mesmo idiotas que escrevem textos como esse e agem de forma oposta no mundo lá fora.
                Essa primeira face, que oculta o lado sombrio da segunda, dá a impressão de ser a construção da sociedade que tanto queremos, mas que, dada as nossas limitações, ainda é impossível de ser alcançada. Assim, seguimos cultivando impressões falsas do que somos, ou do que queremos ser, para que aqueles com quem conversamos tenham também a impressão – não importa aqui se ela está errada -, de que sou melhor do que eu mesmo.
                É uma atitude estranha, mas parece que dá certo. Consigo nutrir meu ego sendo uma pessoa boa, simpática, sociável, ao mesmo tempo em que construo uma imagem de eu mesmo irretocável para os outros. Façamos um teste e transformemos isso em matemática. Digamos que veja em média trinta pessoas por dia. Dessas trinta, somente 20% vão me conhecer mais a fundo, ou seja, como realmente sou, imperfeito e limitado. Está ótimo! 80% das pessoas com quem convivo ou troco ideias terão uma impressão perfeita sobre eu mesmo. É uma ótima jogada, um ótimo plano de marketing pessoal.
                A única coisa que me faz pensar é como essa pessoa se sente consigo mesma sabendo que as pessoas ao seu redor não gostam dela, mas sim de uma imagem que ela própria criou para os outros. Ok, posso muito bem manter essa imagem para o resto da minha, mas aí estarei vivendo a minha vida, ou a vida que os outros gostariam que eu vivesse. Então não seria se enganar duas vezes?
                Muitas pessoas criam uma imagem tão ilusória de si mesmas que acabam vivendo uma vida moldada pelos outros. Fica uma situação paradoxal, aquela guria que eu sigo no Instagram é ela mesma ou é uma imagem do que ela quer eu acredite ser ela? A resposta não é difícil de imaginar. A humanidade adora ser enganada. E pior, aquele que não se deixa enganar, acaba ficando para trás. Bora viver de mentiras então?


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