O que a tragédia no RS nos diz sobre nós, e o quanto a nossa maneira de ver o mundo é perigosa e suscetível a grandes falhas.
Segundo meu conhecimento, a aviação comercial é uma das áreas que possui um protocolo de segurança extremamente eficiente e organizado. Quando ocorre um raro desastre aéreo, dificilmente se dá por uma única falha, mas por várias situações que, por um motivo ou outro, saíram do planejado e resultaram em acidentes. Obviamente ele não é isento de falhas, mas reduz enormemente esse risco.
O exemplo da aviação, infelizmente não é visto em outras tantas áreas, onde parece que os cuidados com segurança e prevenção não são as principais prioridades. Uso como exemplo a indústria da alimentação e a gigantesca quantidade de ultraprocessados que hoje fazem parte da rotina de bilhões de pessoas. Não é difícil conectar que a saúde dos consumidores não é lá uma das principais preocupações dessas empresas.
O Rio Grande do Sul está vivendo uma tragédia anunciada há muito tempo. O sistema de proteção contra enchentes de Porto Alegre falhou assustadoramente. Assim como houve falha em canalizar um rio como o rio dos Sinos, não preservar encostas e construir casas, bairros e cidades inteiras dentro de planícies alagáveis..
Porto Alegre é uma cidade que possui parte importante de seu território construída em aterros. Não estou aqui para julgar o aterro em si, mas dizer que, minimamente, uma cidade que avançou diante o rio, deveria ter como uma de suas prioridades perpétuas, a manutenção e conservação de seu mecanismo de defesa.
E não tenho dúvidas que durante todos esses anos, não faltaram biólogos, geólogos e engenheiros ambientais que alertaram para tal situação.
A falha então não está nas pessoas, mas na maneira como a sociedade valoriza e enaltece o desenvolvimento. É por isso que a palavra “progresso”, me incomoda tanto. Progresso sem discernimento e sustentabilidade leva a caminhos perigosos, como o que estamos vivendo atualmente.
Como pode as empresas mais reverenciadas no mundo, intituladas de Big Five (Apple, Amazon, Google, Meta e Microsoft), terem como grande e principal “índice de sucesso” a sua receita. Um trimestre negativo gera bilhões de perdas em ações. Caso o trimestre seguinte não demonstre uma melhora, a companhia, por maior que seja, já corre graves riscos de desconfiança do mercado e diagnósticos de crise. Temos aí um ciclo vicioso onde a sociedade exige das empresas performance e as empresas retribuem à sociedade performance, mesmo que, talvez, nenhuma das partes gostaria de focar primordialmente nesse ponto.
Celebramos e valorizamos mais a pessoa que conserta o estrago do que aquele que não deixa o estrago acontecer.
Voltemos para a nossa realidade para olhar novamente o caso de Porto Alegre. Se o progresso desenfreado é uma das causas e tragédias só acontecem por múltiplos fatores, insiro aqui minha segunda suposição: planejamento.
A cultura brasileira da “gambiarra”, do “jeitinho brasileiro” gerou uma piada de que “o Brasil não é para amadores”, por que sempre conseguimos sair de situações complicadas com imaginação e improviso. A figura do malandro ilustra esse contexto, e incrivelmente é motivo de orgulho nacional. “É suco de Brasil”, como dizem. Do furar a fila no trânsito ao grupo de whats para avisar da blitz policial, para tudo se dá um jeitinho. O que para muitos é motivo de orgulho, para mim só revela uma consequência da falta de planejamento estrutural. Improvisamos porque não planejamos e nem somos cobrados por isso.
A gigantesca mobilização nacional de doações e voluntários para o Rio Grande do Sul é emocionante, mas não seria necessário se há anos atrás houvesse planejamento e conscientização. Celebramos e valorizamos mais a pessoa que conserta o estrago do que aquele que não deixa o estrago acontecer. E não digo com isso que quem conserta não deva ser valorizado. Deve. Mas aquele que evita, não é nem citado ou lembrado. O herói é aquele que na enchente resolve a situação, e nunca aquele que evita a enchente de acontecer.
Desçamos a nível das nossas empresas e olhemos o quanto essas situações não são rotineiras e cotidianas. Quantas vezes o problema precisa aparecer para alguém resolver? Quantas vezes não paramos tudo para atender emergências? Quantas vezes a área que só “apaga incêndio” é mais valorizada que aquela que sempre controla a situação? Quantas vezes precisamos colocar o “bonde na sala”, para receber a devida atenção?
Isto é preocupante pois cria um ambiente viciado, onde as pessoas buscam pelas brechas para performance e entendem que quem “grita mais alto”, normalmente é mais atendido. Geram prioridades não tão prioritárias e debates pouco produtivos.
Se acontece nas nossas empresas, porque não aconteceria em entidades governamentais e estatais que tem, entre as suas prioridades a segurança da população? Não é difícil imaginar um cenário como este em um debate na cúpula do governo, onde a pauta é manutenção do sistema de defesa da cidade, mas a pressão popular é para a revitalização da orla. Em Porto Alegre isso é fato, aconteceu. E levante a primeira pedra quem também não optaria pela orla. Nós, como sociedade, já estamos orientados a valorizar mais o “progresso” do que a sustentabilidade.
Estou diminuindo a culpa do governo ou dizendo que a culpa é da orla? Claro que não. Simplesmente que, com planejamento e maturidade, discussões como estas seriam mais fáceis. Resolveria? Difícil dizer. Mas o planejamento, atrelado a uma boa expertise, e a boas táticas de execução como conexões intra empresariais, grupos de estudo, gestão madura, liderança inspiracional, networking, comunicação e oratória, poder de influência, ecossistemas de inovação, dados entre muitos outros, poderiam desenhar um caminho mais otimista para o nosso futuro.
Torço muito que esta tragédia nos ensine isso. No âmbito da sociedade, que passemos a dar mais atenção a cientistas, estudiosos e pesquisadores. Que suas opiniões tenham mais peso na tomada de decisões. Que o progresso seja sustentável, e que, tendo a segurança e a vida das pessoas como prioridades fundamentais, finalmente comecemos a planejar.
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