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A fronteira entre propaganda e entretenimento

Caminhamos para um mundo cada vez mais conectado e aberto, que nada faz lembrar a então realidade vivida antes do surgimento da internet. Lembram? Onde a única forma de comprar roupas era ir até a loja e ainda se vendiam enciclopédias de porta a porta. Hoje, por incrível que pareça, ainda tem muita empresa querendo vender essas enciclopédias, mas cada vez mais as portas estão fechadas. Não por falta de educação, mas simplesmente porque tem coisa muito melhor para fazer.



O mundo das enciclopédias era um mundo linear. Onde a estratégia de vendas, de certa forma, não envolvia muito mistério e contava com uma concorrência controlada. Naquele tempo ou você comprava uma enciclopédia, ou não teria conhecimento. Hoje, dificilmente um negócio vai existir por muito tempo sem players disputando este espaço. E mesmo que não existam, a competição não é necessariamente entre concorrentes, mas com qualquer forma de entretenimento que dispute o tempo do consumidor. Não à toa que o fundador da Netflix, Reed Hastings, ao ser questionado sobre o crescimento dos streamings, disse que seu maior concorrente era o sono das pessoas. E não, não é arrogância. 

O olhar de Hasting está atento no quanto a Netflix ocupa na vida dos seus assinantes. E claro, esta é uma métrica acompanhada de perto pela empresa. A conta não é difícil. Segundo o site Streaming Observer, em 2018, um assinante da Netflix ficava pouco mais de uma hora por dia assistindo aos conteúdos da plataforma, que somam 434 horas por ano — o equivalente a 18 dias. Agora compara esse número, a outras atividades rotineiras de um ser humano, segundo dados da Agência de Estatísticas do Trabalho e Uso do Tempo dos Estados Unidos:



Ou seja, além de concorrer com Amazon Prime, HBO e Disney+, a Netflix disputa com amigos, família, demais redes sociais, academia e livros. E não entenda essa comparação como um número maligno da empresa aonde o plano é deixar as pessoas menos sociáveis e distantes. De certa forma, mas do que uma métrica, é um diagnóstico do cenário atual: a Netflix ocupa uma posição de preferência na vida das pessoas, e a partir disso, seja qual for o seu produto ou serviço, você estará disputando atenção com a Netflix.

Qualquer produto? Qualquer! Pegamos o exemplo mais clássico de um produto neutro: um pacote de arroz.

No tempo das enciclopédias, a jornada do cliente era basicamente definida por preço. Ir a um supermercado, buscar a prateleira correta, comparar preços e colocar no carrinho. Vez ou outra um merchandinsing na Ana Maria da Braga e uma ação de PDV dentro do próprio mercado impulsionavam as vendas.

Agora repare como essa jornada, linear e baseada nos 4Ps do marketing, se expande uma vez que a própria ida para o supermercado já não é mais uma necessidade. O shopper, que claramente era direcionado a mulheres “donas de casa”, hoje é multifacetado, e as próprias opções de arroz também expandiram. 

Ok, mas e a Netflix? Uma vez o cliente tendo percebido valor no seu produto, tem duas formas básicas de concretizar o processo de compra: preço ou marca. O primeiro é sendo o mais barato ou estando em promoção e o segundo é ele reconhecer sua marca como opção confiável, independente do preço, e gerando valor.

Para essa segunda opção ele precisa conhecer e ter contato prévio, para que no momento da compra ou escolha, busque por ela. E aí o vendedor de enciclopédia não funciona mais. Pois o cliente está ocupado vendo Netflix ou fazendo qualquer outra atividade que lhe tome a atenção e da qual não quer ser interrompido.

É hora de buscar as formas de abordar esse consumidor de uma maneira agradável, que não interrompa e gere valor percebido.

Interrupção atrapalha. É hora de buscar as formas de abordar esse consumidor de uma maneira agradável, que não interrompa e gere valor percebido. Talvez o exemplo mais clássico, se tratando de alimentação, é vincular-se a receitas. O canal “Receitas Nestlé” já tem quase meio milhão de seguidores no Youtube que optaram conscientemente e seguir a marca. O do MasterChef, 4 milhões. A questão é que estar inserido em um conteúdo que seu público vai de encontro, é muito mais efetivo que o interromper por meio de um comercial ou de um anúncio invisível. Anúncios e comerciais ainda podem funcionar, mas só com criatividade e evitando o trivial. E perdem cada vez mais espaço para ativações de marca, experiências e conteúdo. 

Se o briefing é arroz, fotografe bem quem é o público-alvo e trabalhe nas diversas formas de entregar conteúdo que seja relevante para ele. O mundo atual destruiu essa jornada linear e fez dela sistêmica. O que não significa mais difícil, mas um pouco mais complexa. E como o caminho para o sucesso não é um só, podemos entender que existem mais chances de alcançar esse objetivo. Seja disputando contra Netflix, sono ou Masterchef.

Falando em vendedor de enciclopédias... lembrei disso...



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