O Filme:
O casal Adelaide e Gabe (Lupita Nyong’o e Winston Duke) viajam com seus dois filhos (Shahadi Wright Joseph e Evan Alex) para sua casa de praia. Tudo muda quando a família recebe a visita de seres estranhos que ameaçam invadir a casa. Nós (Us, 2019) é o segundo trabalho de direção de Jordan Peele, que surpreendeu em sua estreia com o excelente Corra! (Get Out, 2017). Além de dirigir, Peele também escreve o roteiro e produz o longa, que também conta com Elisabeth Moss no elenco.
Avaliação:
Definitivamente existem vários filmes separados dentro de “Nós” que pode ser assistido como um filme de terror puro, um drama psicológico, uma ficção científica ou drama social. Todas as maneiras de interpretar “Nós” são válidas. E justamente essa miscelânea de sensações que fazem o novo filme de Jordan Peele algo a ser celebrado. Lupita Nyong’o está absurda, assim como o restante do elenco que não faz baixar em nenhum momento o tom bizarro e de mistério do filme. Em certo momento, quando esperava um aprofundamento maior no suspense e no mistério a violência imposta me pareceu repetida e gratuita, mas manteve o filme sustentado. A trilha sonora contribui em muitos momentos com o roteiro, gerando os melhores momentos, tantos de comédia quanto de suspense. Por fim, a direção de arte e a maquiagem inserem traços assustadores as sombras, desde vestimenta a utensílios até aos cenários tanto internos quanto externos. Destaque para as duas casas onde ocorrem as principais cenas e o bom uso de vidros, escadas e corredores para dar dinâmica as cenas de ação e suspense.
As camadas (SPOILERS)
Diante de tantas interpretações possíveis de sua história, é difícil sair da sessão com uma opinião plenamente formada sobre o filme. “Nós” é daqueles filmes que se molda com o tempo e com o contexto de vida de seu público e é extremamente indicado revê-lo para ampliar o olhar sobre todos os detalhes postos em cena.
E diante dos vários cenários apresentados por Peele, opto pelo seu discurso social, onde a meu ver, é a leitura mais poderosa de seu enredo. Essa interpretação tem início no próprio título original do filme “Us”, que além da tradução literal, também representa a sigla do país de origem (United States). Fato esse reforçado logo no início do filme em que os seres, quando questionados do que são respondem: “we are americans”.
Assim como o Brasil, os Estados Unidos foram colonizados e prosperaram em virtude do tráfico de escravos. Muito da potêncial que o pais é hoje passa pelas mãos de centenas de anos de trabalho escravo. Também é nos Estados Unidos que o assunto racismo é tão debatido e causador de tanta polêmica até hoje. Não custa lembrar que antes de 1964 a segregação racial era algo comum no país e aceito pelo estado.
Mas apesar da temática inclusa na trama, o filme não trata apenas da questão racial, mas de todos os grupos que por um motivo ou outro não estão de acordo com o que a sociedade americana entende por ideal. E a forma como podemos ler esse contexto são várias.
O nosso próprio contexto local mostra-se um perfeito exemplo dessa alegoria. Há décadas idealizamos o país norte-americano de todas as formas. Por muito tempo os EUA foram o país dos sonhos, a terra da liberdade e sonho de vida de qualquer brasileiro. Além dos fatores geográficos, políticos e econômicos, a indústria cultural é um importante personagem que desenvolveu essa idealização pelo american way of life. O próprio cinema hollywoodiano nos aproxima desse estilo de vida, apesar de tão distante.
Acontece que esse estilo de vida é vendido, porém não é concedido. E por concessão não entenda o ceder por ceder. Não é concedido por não haver espaço ou simplesmente por não querem que outros ocupem o lugar dos que já estão. Em “Us” para as sombras ocuparem um lugar elas precisam substituir. O “we are americans” dito no filme soa mais como um grito por fazer-se visto do que uma apresentação.
“Nós” é uma palavra que faz referência ao coletivo. Mas é fato que nos últimos meses a palavra “eles” vem sendo cada vez mais comum. E é inegável a representação disso diante da revelação em sua cena final.
Ao longo de toda a projeção o filme brinca com os sentimentos do espectador, do horror total a comédia, ao drama. Cinema é um jogo de empatia e não por acaso o diretor gasta o primeiro ato do filme nos inserindo no cotidiano daquela família e introduzindo os protagonistas cada um a seu perfil. Tudo para que no final tenha argumentos para questionar a nossa própria percepção.
Afinal, a partir do revelado, nosso sentimento diante da protagonista é alterado ou permanece o mesmo? E se alterado, por que? Toda a vida que acompanhamos foi construída pela pessoa que conhecemos desde o início, é por ela que nos afeiçoamos.
Nessa brincadeira de trocas de papeis o diretor nos questiona o quanto somos reféns da sociedade ao qual estamos inseridos. Nada é imutável, mas é inegável o fato de grande parte da nossa personalidade ser construída por bases externas. E isso só ganha força em um mundo cada vez mais desigual e injusto.
Análise das cenas:
Logo na cena de abertura temos um longo travelling out que vai do plano detalhe do olho de um coelho a um plano aberto aonde vemos dezenas de coelhos enjaulados ao som de uma música assustadora e que nunca mais pretendo ouvir. Além de nos inserir ao clima de suspense do filme, o coelho também serve para representar quem são as sombras (ou nós mesmos?) e o modo como elas vivem. Junto aos ratos de laboratório, os coelhos são os animais mais utilizados para experiências em produtos, assim como as sombras vinham sendo até então. Importante perceber que assim como as sombras se rebelam em cena próxima do fim também vemos os coelhos soltos pelo local, agora abandonado.
E a grande cena do filme é a dança final entre Adelaide e sua sombra. Esta última, que se usou da dança para “libertar-se” de sua cópia, agora novamente usa da dança para tirar vantagem de sua cópia em uma batalha coreografada no ápice estético e simbólico do filme.
Nota: 8,06
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