O Filme:
Tony Lip (Viggo Mortensen) é segurança de um famoso bar em Nova York, que perde seu emprego após o estabelecimento ficar fechado temporariamente. Na busca de um novo trabalho, participa de uma entrevista de emprego para trabalhar como motorista do renomado pianista negro Don Shirley (Mahershala Ali), em uma turnê para a região oeste dos EUA durante o início dos anos 1960, auge da segregação racial no país. O filme é dirigido por Peter Farrelly em seu primeiro filme sem o irmão Booby. Os dois dirigiram juntos algumas das principais comédias americanas dos anos 1990 e 2000 como Déby & Loide (1994), Quem vai ficar com Mary (1998), Eu, Eu mesmo e Irene (2000), o Amor é Cego (2001) entre várias outras.
Avaliação:
Talvez a maior dificuldade encontrada em Green Book, é o fato do filme não encontrar realmente seu lugar e tentar ser várias coisas ao mesmo tempo. De maneira geral ele é concebido para ser um road movie, contando a história por meio de capítulos com base nas cidades aonde os protagonistas passam. Em cada local o sentido do filme vai sendo modificado, passando do humor para o drama, para um tom mais crítico, voltando para o humor, tentando um teor mais reflexivo vez ou outra, e por aí vai. A questão é que em nenhum dessas situações o filme parece se encontrar. E por mais que consiga inserir reflexões perspicazes em certos momentos, a continuidade das cenas tiram toda o peso que foi intencionado. Isso é agravado com o principal assunto que o filme retrata: a intolerância humana. É difícil inserir humor em um assunto tão denso, e se inserido, deve ser muito bem feito, o que não ocorre aqui. Inclusive, acrescento que o humor inserido, além de não agregar a história, é muito mal utilizado como forma de suavizar situações extremamente complexas e delicadas.
Nada disso tira a grandiosidade das interpretações de Mortensen e Ali, mas que também não são o suficiente para levantar o filme. A química entre os dois ocorre, mas é necessária sempre ser revigorada em virtude das quebras de roteiro. No terceiro ato essa cumplicidade é melhor vista, mas o tom piegas de seu final é difícil de ser engolido.
A trilha sonora também não ajuda, é fraca, genérica e novamente capitular. A montagem faz o possível para unir a história como um todo, mas dada as dificuldades de roteiro e principalmente de direção, é até elogiável seu trabalho final (vide o fiasco de Bohemian Rhapsody, por exemplo). E por fim a fotografia consegue dar graciosidade ao filme e construir belos planos e angulações. Tecnicamente, é o melhor que o filme oferece.
As camadas (SPOILERS):
Green Book até tenta inserir questionamentos ao longo da história que fogem da temática do racismo, mas que não se sustentam e tornam-se muito rasos. Talvez na melhor cena do filme, que ocorre durante uma discussão entre os dois na estrada, vemos um ataque direto nas fraquezas um do outro. É bonita, traz reflexão, mas não traz peso e se dissipa logo na cena seguinte. No cinema dizemos que melhor que dizer, é mostrar. E pouca coisa é vista em Green Book.
Desde seu início uma das intenções do filme é a desconstrução do personagem de Mortensen, de um racista velado para um talvez simpatizante à causa. Mas a jornada é confusa, pois no meio do caminho o enredo salta de um cenário de preconceito para um cenário de amizade. E o filme acaba dessa maneira. Assim, o racismo enrustido de Tony não termina e o início da amizade com um negro não interfere em nada seu pensamento sobre os demais. Não seria muito vago para os dias de hoje? E perceba o perigo desse desfecho, afinal, Tony pode até dizer que não é racista, pois tem até amigos negros, não é mesmo? Ou dizer que “os negros até que não são tão ruins assim, até construí amizade com um deles”.
Não digo que o diretor devesse interferir na história original, mas poderia instigar isso ao seu público. Em muitos momentos do filme faltou essa coragem de assumir um discurso mais pesado. Quando estes momentos chegavam eram sempre atenuados com humor. E se a intenção do mesmo era de realmente não aprofundar o discurso, qual a necessidade do filme em si? O resultado é um filme pipoca e leve que esconde por trás uma ferida gigantesca e aberta, que em nenhum momento teve a intenção de tocar.
Análise das cenas:
Um dos destaques da direção de Peter Farrelly e seu montador é o contraste de cenas que acompanha todo o filme. Logo em se início, temos um momento em que, após ver dois negros bebendo água em copos na sua casa, Tony pega os copos que eles utilizaram e os joga no lixo. Na cena seguinte ele se reúne com a família e amigos para orar antes da refeição.
Outro detalhe que merece elogios é o modo como todos os diálogos dentro do carro acontecem. Perceba que logo no início da viagem a câmera os enquadra de fora, no máximo do banco ao lado, e quanto mais os protagonistas vão se conhecendo, mas a câmera se aproxima deles e mais eles ficam à vontade um com o outro.
Aliás, Farrelly se utilizam muito bem da profundidade de campo e de boas angulações para mostrar as distâncias vividas pelos personagens. Em certa cena onde o personagem de Ali é barrado de entrar em um restaurante por ser negro, perceba que toda a discussão se dá do ponto de vista da mesa onde os demais músicos estão, que não ocasionalmente, está no local mais distante da entrada, refletindo o gigantesco distanciamento que os separa. A cena ganha ainda mais peso quando vemos que tanto garçons (todos negros, por sinal) quanto convidados vestem roupas claras, as toalhas de mesa também são claras e o próprio restaurante reflete muita luz. A mise en scene aqui construída, mesmo com luz branca é totalmente hostil também para nós espectadores, que sentimos o quanto não somos e nunca seremos bem recebidos naquele tipo de lugar.
Nota: 7,28
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