Pular para o conteúdo principal

Manchester à beira-mar





Manchester à beira-mar é o mais recente título que se enquadra em meu mais novo e favorito gênero fílmico: os filmes humanos. E justamente o fato de ser tão humano que o torna tão difícil assim de ser digerido. Ao longo de suas duas horas de duração somos jogados a realidade de Lee Chandler (Casey Affleck), um zelador que vive em Boston e se vê obrigado a retornar a Manchester, sua cidade natal, ao saber da morte de seu irmão.

O roteiro aqui não apenas nos apresenta ao protagonista, mas insere o público dentro de sua rotina com alguém que fica observando tudo de perto. São poucos os momentos em que a câmera não o acompanha a menos de três metros de distância. E de tão próximo, de imediato ficamos sedados por uma rotina medíocre e totalmente tediosa.

O diretor Kenneth Lonergan insiste nesse contexto e é ajudado por uma trilha sonora dramática e uma fotografia que não foge dos tons cinzentos e apagados. O inverno de Manchester traz um branco anestésico, e o sol quase nunca aparece.

O roteiro, rico tanto nos diálogos quanto na cronologia da história, usa-se de flashbacks para apresentar o passado de Lee. O uso desta ferramenta, de tão bem feito, acaba por tornar-se peça fundamental a história. Eles estão tão intrínsecos a história que não há a mínima necessidade de informar por meio de letreiros a passagem do tempo. Compreendemos que avançamos ou retrocedemos a linha cronológica por meio da personalidade, atitudes e expressões de seus personagens e pela fotografia, que traz seus únicos respiros de cor presos ao passado.

Manchester à beira-mar tem toda a sua história narrativa construída para Lee, e Casey Affleck carrega como ninguém toda essa responsabilidade. Em uma atuação introspectiva e extremamente densa, o ator consegue manter um ritmo a trama e prender a atenção do público dentro de um personagem incrivelmente sem carisma algum.

É curioso notar que tanto em momentos de pressão ou os quais Lee precisa tomar alguma atitude, a câmera simplesmente para a sua frente aguardando sua ação, que quase nunca se mostra assertiva ou segura. Da mesma forma, o fato de Affleck manter sempre seu personagem de cabeça baixa, fala mansa e andar lento, acaba por transparecer muito de seus medos e justificar, sem a necessidade de diálogos expositivos, a sua incapacidade perante a vida.

Levamos uma hora de projeção até compreender toda a frieza do personagem. A cena que revela tal acontecimento é simplesmente jogada em meio ao roteiro (de forma proposital, claro), pegando de surpresa tanto o protagonista quanto ao público. Não ao acaso, em uma cena de interrogatório, a câmera que até então via Lee sempre de frente, põe se no lugar do personagem, fazendo-nos acompanhar aquele momento junto com ele.

Outra grandeza do filme é sua atmosfera, uma vez que o inverno inglês aqui parece ocupar-se não apenas dos lugares, mas das pessoas, congelando assim qualquer ato ou emoção que não seja o luto, a dor ou a perdão. E se direção, fotografia, figuro e design de produção conferem todos os detalhes para criar uma Manchester depressiva e desiludida, gostaria de chamar a atenção à rica mixagem de som e seu papel importantíssimo dentro do longa. Pois, nos poucos momentos em que não ficamos afugentados com a trilha sonora atordoante, até mesmo detalhes como o remexer de cadeira, o barulho do carro, do vento ou até mesmo um suspiro parecem incomodar. E não sendo bastante, quando nada disso acontece, surge então o silêncio, que transformada cada segundo em horas insuportáveis.

SPOILERS



Imaginar que todo esse universo se passa na cabeça de Lee é aterrorizante. Vê-lo regressar à cidade de seus fantasmas passados e ver-se preso a ela é ainda mais. E com a exceção de Patrick, seu sobrinho que vive uma fase de luto envolto a início de adolescência, não vemos sorrisos em Manchester à beira-mar.

O passado traiçoeiro do protagonista que parece nunca ter lhe abandonado lhe tirou a cor. Voltando um pouco aos flashbacks, é curioso notar que mesmo aqueles que retratam momentos alegres de seu passado, acabam fazendo efeito contrário no presente, uma vez que apenas confirmam a ausência ou a degradação de alguém que um dia foi.

Lee nunca encontrou saída para sua culpa, e nunca conseguiu livrar-se de seu carma pessoal. Em uma cena próximo do final do filme, onde um senhor conta que seu pai saiu para velejar e simplesmente sumiu, assim Lee também desapareceu. Em seu lugar surgiu um outro alguém que vive a vida sem vivê-la ou senti-la.

Quando falamos em perdão, o entendemos como o ato de perdoar alguém sobre algo. Manchester (...), coloca em prova o auto perdão, o recomeçar, o partir do zero. O peso da culpa de Lee é tão grande que se mostra maior a própria vontade de voltar a viver, ou então o medo de retornar a algo que ele não tem a coragem de encarar novamente.

Apático e recluso, este medo o acaba bloqueando de novas interações. Preso em seu mundo, Lee acaba por libertar toda sua endorfina em briga alheias em bar. Essa explosão o liberta momentaneamente de seus males, mas em um plano maior, deixa-o cada vez mais preso a si mesmo.

Não contente em destruir qualquer perspectiva de melhora em alguém afundado em si mesmo, em seu desfecho o filme ainda nos joga em um reencontro totalmente devastador. E faz isso por meio de uma das cenas mais tristes e melancólicas já vistas.

Manchester à beira-mar é triste, mórbido, entediante, pessimista e que não traz nenhum pingo de esperança. E são todos estes ingredientes que constroem um obra-prima tão humana e visceral que perdura na mente daqueles que a assistem por horas e com certeza será lembrado no cinema como um retrato fiel e melancólico da nossa própria existência.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O amor é a flor da pele e eterno!

“Antigamente, se alguém tivesse um segredo que não quisesse partilhar, subiam uma montanha, procuravam uma árvore, abriam um buraco nela e sussurravam o segredo para dentro do buraco. Por fim, cobriam-o de lama e lá deixavam o segredo para sempre” A frase acima é dita por Chow Mo-Wang a seu amigo Ping, no filme Amor à Flor da Pele (2000), do diretor chinês Wong Kar-Wai, em uma das histórias de amor mais bem contadas do cinema, segundo muitos críticos. Kar-Wai consegue em seu filme dedicar ao amor a tradução que talvez mais o represente: a eternidade, ou o popularmente, até que a morte nos separe. Na história, conhecemos sr. Chow e a srta. Li-zhen Chan, os dois se mudam para Hong Kong da década de 60 com seus respectivos cônjuges no mesmo dia, onde ocupam quartos vizinhos de um mesmo edifício. Em comum, além do lugar onde vivem, os dois tem a ausência total dos parceiros, e posteriormente uma descoberta: seus cônjuges estão tendo um caso entre si. A descoberta aproxi

Volver

Falar de Almodóvar nunca é fácil. Uma das características do cineasta espanhol é seu atrevimento e coragem em propor nas telas seus conceitos e ideias. E é de atrevimento e coragem que se faz esse texto, ao tentar transpor em palavras um pouco de um dos filmes que mais aprecio em sua filmografia: Volver. Volver conta a história de Raimunda (Penélope Cruz), mulher casada e com uma filha de 14 anos, que ainda tenta superar a morte de sua mãe, enquanto cuida da tia. A personagem de Cruz, inclusive, é quem carrega o filme por completo e dá alma à trama. Cada cena da atriz renova o filme, que composto por um excelente roteiro, nunca deixa a história se esvair ou perder força. Não à toa, em muitas vezes vemos Penélope enquadrada ao centro da tela, tomando para si toda a sustentação do longa. Traduzindo essa percepção para a personagem Raimunda, é assim que ela também encara a sua vida. Uma vez que, mesmo com um casamento complicado, dificuldades financeiras crescentes e um passado

Divertida Mente (Inside Out) é uma viagem fantástica rumo ao autoconhecimento

O primeiro filme da Pixar, Toy Story, completa 20 anos esse ano. Toy Story foi mais do que o primeiro filme produzido em computação gráfica do cinema, a história de Woody e Buzz Lightyear representou a entrada da Pixar no segmento de animação e uma revolução no modo de fazer desenhos. Em vinte anos foram quinze filmes produzidos. Nenhum deles pode ser considerado um filme ruim, e no mínimo três deles, obras primas. E Inside Out, ou Divertida Mente no título em português, é um deles. A Pixar conseguiu criar um padrão tão alto de qualidade que qualquer filme mediano produzido por eles pode ser considerado um Dreamwor..., digo, um trabalho ruim. O estúdio reúne sete Oscars de melhor animação em nove disputados, sendo que em duas oportunidades disputou na categoria de melhor filme - Up! e Toy Story 3.                 Divertida Mente segue a linha dos filmes citados. É Pixar em sua melhor forma, abusando de originalidade e criatividade. Com a direção de Pete Docter, o mesmo d