Falar de Almodóvar nunca é fácil. Uma das características do cineasta espanhol é seu atrevimento e coragem em propor nas telas seus conceitos e ideias. E é de atrevimento e coragem que se faz esse texto, ao tentar transpor em palavras um pouco de um dos filmes que mais aprecio em sua filmografia: Volver.
Volver conta a história de Raimunda (Penélope Cruz), mulher casada e com uma filha de 14 anos, que ainda tenta superar a morte de sua mãe, enquanto cuida da tia. A personagem de Cruz, inclusive, é quem carrega o filme por completo e dá alma à trama. Cada cena da atriz renova o filme, que composto por um excelente roteiro, nunca deixa a história se esvair ou perder força. Não à toa, em muitas vezes vemos Penélope enquadrada ao centro da tela, tomando para si toda a sustentação do longa.
Traduzindo essa percepção para a personagem Raimunda, é assim que ela também encara a sua vida. Uma vez que, mesmo com um casamento complicado, dificuldades financeiras crescentes e um passado cada vez mais misterioso, a protagonista tem em si própria a força para mover sua vida, e parece não compartilhar com ninguém parte dessa auto pressão. A irmã Soledade (Sole) é reflexo da independência de sua irmã, e se vê passiva aos gostos dela, como deixá-la dirigir seu próprio carro, ou pedir a Raimunda se já não poderiam ir embora, enquanto realizam uma visita. É uma cumplicidade que apresenta um pouco da personalidade de ambas, e dos próprios sentimentos que uma tem por outra.
Outro exemplo está nas cenas em que a vemos trabalhando em seus três empregos. Em todos é enquadrada distante dos demais funcionários ou sozinha. Como mostrando o distanciamento, a meu ver proposital, que mantém dos demais. O que não a impede de manter boas e confiáveis relações no bairro aonde mora, mas que ainda assim são mostradas de maneira ágil e rápida, mais como uma conversa de negócios, do que de boa vizinhança.
Saindo da esfera do personagem e entrando na história como um todo, Volver trata de vários temas, dos quais gostaria de destacar um em específico: o perdão. Que nada mais é do que o regresso a um passado mal assimilado, por mais obscuro ou profundo que ele seja. Não à toa, em sua cena inicial, o filme abre com um plano sequência em um cemitério, aonde mulheres limpam tumbas em meio a uma enorme ventania (o perdão pós morte não seja, talvez, o mais difícil e doloroso?).
É lá que encontramos Raimunda, sua filha Paula e a irmã Sole. As três estão em frente da tumba dos pais, mortos em um incêndio. No entanto é apenas Raimunda que limpa a tumba, que de certa forma reforça a personalidade ativa da protagonista e também demonstra o zelo desta pela história dos pais.
A partir deste ponto, acompanhamos a uma sequência de situações que farão a vida de Raimunda mudar, em uma viagem a seu passado por meio de fatos presentes que a farão agir e repensar o modo como esta levou a vida até então e as consequências que esses episódios tiveram em sua vida.
SPOILERS
É este o plot twist que leva/obriga Raimunda e reinventar a sua vida, ao passo que, no mesmo momento, é informada, por telefone, de que sua tia Paula acabara de morrer. Já na sequência, seu vizinho bate na porta e pede para cuidar de seu restaurante durante uma viagem. Impossibilitada de ir ao enterro, opta por esconder o corpo dentro de um freezer no restaurante. Todas essas informações, ao passo que geram pontos de suspense para a construção da cena, também representam a fuga de Raimunda a uma vida distante de todos, e presa a um casamento ao qual era infeliz.
Paralela a isso, Irene (Carmen Maura), a mãe de Raimunda e Sole, reaparece. Tida como morta, Irene na verdade vivia escondida, junto a tia Paula, e que após sua morte, esconde-se no porta-malas de Sole, e passa a viver com esta.
A partir daí, acompanhamos as duas sagas de Raimunda: encobrir o assassinato de Paco e se aproximar cada vez mais do encontro com a mãe. Este caminho tem sua ebulição em uma das cenas mais belas do filme e também de toda a carreira de Almodóvar, quando Raimunda, em um serviço de metalinguística do filme, canta a canção que dá título ao filme, em meio a uma festa organizada pela própria. Descobrimos ali que a protagonista cantava e que aquela canção havia sido ensinada pela mãe durante a infância das irmãs.
É o primeiro encontro de Raimunda com o passado. De relance ela revê a mãe ao mesmo instante que cita versos de uma auto referência extrema e que revelam também muito do interior da protagonista e o motivo de manter-se tão presa ao presente, idealizar seu passado e o medo de tentar revê-lo com olhos mais justos:
“Tenho medo que o encontro
Com o passado possa
Se confrontar com a minha vida.
Tenho medo que a noite
Que povoada de recordações
Encadeia meus sonhos.
Mas o viajante que foge
Cedo ou tarde detém seu passado
E ainda que tenha esquecido,
Que tenha destruído,
Tenha matado minha velha ilusão.
Guardo escondida, uma esperança humilde
Que é toda a riqueza do meu coração".
A partir da música, Raimunda parte ao conserto de suas falhas ou deficiências, simbolizadas, por exemplo, pelo regresso da maleta de tia Paula à casa de Sole, o plano de enterrar (sepultar?) o corpo de Paco e, principalmente, suas mudanças de vestuário, abandonando os tons de vermelho sangue e o preto, e passando para cores mais expositivas, como o roxo, o verde e as peças com estampas floridas.
É um retorno, um regresso a um passado que Raimunda teimava em não rever, e que se aproxima aos poucos. No entanto, a mudança, que até o momento encaminhava-se lenta, agora, em seu grande momento ganha traços do humor de Almodóvar, que introduz a cena do tão esperado encontro entre Raimunda e sua mãe/passado/história com o giro de uma forma de pudim. Não por acaso também, é Sole quem releva o segredo. A irmã que até então vivia as sombras da independência da irmã mais velha, agora abria os olhos da mesma.
No entanto, assim como o girar da forma de pudim, o regresso é muito abrupto para Raimunda e ela foge. É a filha que a chama de volta, que lhe dá forças para encarar seu passado de frente: “Porque não voltamos? ” Elas voltam, e enfim se reencontram.
O filme ainda guarda a cena antológica aonde Irene e Raimunda reencontram, enfim, o passado. Ela representa o início da reaproximação de mãe e filha e também as diferenças que a fizeram ficar tão distantes por tantos anos.
Mesma que Cruz ocupe com grandeza todo o filme. O restante do elenco merece muitos méritos, em especial, claro, Carmen Maura, que coloca em cena um Irene humana, e que desenvolve os ares de uma mãe com o decorrer da projeção. A impressão é que, assim como Cruz, nós, espectadores, vamos descobrindo seu lado maternal aos poucos. Lola Dueñas, que interpreta Sole, também merece destaque, ao construir seu personagem com um carisma imediato e cumprindo muito bem a função de um coadjuvante coesa, criando uma química perfeita com Cruz, e a deixando brilhar sempre que necessário.
Almodóvar, além de levar seu filme de ponta a ponta como só o próprio sabe fazer, também insere momentos cômodo ao longa que atenuam a forte história que é contada e são extremamente pontuais, não interrompendo a dramaticidade, mas sim a deixando mais próxima do público.
Por fim, a fotografia e os cenários típicos do diretor completam a composição de um filme totalmente Almodovariano, que expôs ao mundo o talento de Penélope Cruz, reforçou o estilo do diretor espanhol com mais uma obra prima e teve Carmen Maura como a cereja do bolo de toda a produção. Abusando do trocadilho, Volver trouxe de volta a atriz que por 18 anos havia deixado de fazer trabalhos com o diretor, justamente para um filme e um papel que representam alguém que regressa em busca de perdão e paz. Coisas do cinema, que só deixam ainda mais saborosa, um filme que já nasceu clássico.
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