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Nightcrawler e uma crítica sobre a imprensa atual





É inevitável! A análise de Nightcrawler (O Abutre, em português) discorre da visão deste como obra cinematográfica para um retrato da realidade “jornalística” de hoje. Há anos me decepciono com atitudes de emissoras e “jornalistas” (sim, sempre com aspas) diante de notícias relacionadas a crimes ou a morte. Nightcrawler joga esse universo perverso na cara do público, mostrando o lado mais desprezível dessa profissão e também da nossa natureza: o prazer com a desgraça alheia.
No filme acompanhamos Louis Bloom (Jake Gyllenhaal), um rapaz que após acompanhar uma equipe de filmagens independente que fazia imagens de um acidente de trânsito, decide investir na carreira. O protagonista compra uma câmera amadora, um equipamento que capta as frequências de rádio da polícia e passa as madrugadas atrás de ocorrências para posteriormente vender as imagens as emissoras de tv. Não demora muito para que Bloom, fascinado por esse meio, comece a manipular as cenas dos crimes para encontrar o melhor ângulo ou escancarar na tela imagens do rosto das vítimas cobertos de sangue.
Já imerso nesse mundo ele encontra em Nina (Rene Russo), uma produtora de um noticiário sensacionalista, a pessoa ideal a quem pode vender suas “obras-primas” baseado no que a emissora sugere ser um bom material (lê-se dar audiência).
Com o andar do filme, Bloom revela-se um sociopata frio e calculista. Méritos para a incrível interpretação de Jake Gyllenhaal e o universo criado pelo diretor Dan Gilroy, que compõem o sujeito, desde maquiagem e figurino, com cabelo milimetricamente penteado e roupas irritantemente bem passadas, passando pelas expressões corporais de Gyllenhaal, com olhos saltados, frases de peso psicológico tenebroso ditas com uma calma perturbadora e diálogos tortuosos, até a fotografia e direção de arte primorosas. NIghtcrawler é um filme noturno, tudo acontece a noite, inclusive cenas ocorridas durante o dia. O trabalho de Robert Elswit (diretor de fotografia) tem o cuidado de transformar a casa de Bloom, o switch da emissora e até mesmo um restaurante mexicano em ambientes sombrios e pesados. É notável, por exemplo, a preocupação de Bloom quando, após vender suas matérias a emissora, acompanha-as no telejornal do dia seguinte, como que saboreando aquele triunfo e guardando-as, como troféus de sua compulsiva ambição.
O filme com um todo é um desenho de personalidade de Bloom, o personagem está em praticamente todas cenas. Mas é justamente seu relacionamento com Nina, que percebo como o grande destaque do longa. Os diálogos que começam como a conversa de um aprendiz para com seu mestre, ganham uma reviravolta que perturba. O desenrolar da trama mostra que ambos não têm escrúpulos, um instiga o lado corrosivo do outro e a cena do restaurante o primeiro clímax do filme, com uma troca de diálogos espetacular (e talvez dê o Oscar de melhor ator a Gyllenhaal). O bom roteiro faz com que a ameaça, que até então parecia ser absurda, se revele como consequência de um jogo em que ambos sentem prazer em jogar.
Algumas das frases de Nightcrawler dizem muito sobre o tema estudado. Como por exemplo a que Nina cita como metáfora da sua profissão para Bloom: “A melhor forma de entender o espírito do que exibimos é pensar em uma mulher gritando enquanto corre pela rua com sua garganta cortada.” Ou quando aconselha, ao dizer que "se sangrar, é manchete". Por fim, a direção de Gilroy ganha seu grande destaque na cena de perseguição em seu ato final, proporcionando minutos de euforia para seu ótimo thriller psicológico.


O jornalismo sensacionalista infelizmente é uma triste e inevitável realidade. Vivemos em uma sociedade onde o que dá audiência são páginas policiais e chamadas esportivas. Correndo por fora, temas como economia, cultura e política ajudam a “fechar a edição”. É triste também pensar que as cenas vistas em Nightcrawler não são mera ficção, infelizmente o que essa mídia faz é galgar ao máximo possível um instinto obscuro do ser humano.
Reconheço a importância das páginas policiais ou das tragédias diárias para manter os cofres de emissoras, jornais e rádios no positivo, mas este não é o ponto. A discussão apresentada por Nightcrawler se faz aos valores e a ética em transmitir essas informações.
Por incrível que pareça, notícias de morte ou crimes, que a meu ver são as que mais deveriam ter cuidado em sua edição, são as que menos processo técnico possuem. O fato acontece, a imprensa chega primeiro que a ambulância no local do acidente e segundos depois a “notícia” já está na internet, sem cuidados com imagens, ou alguma preocupação com a identidade dos envolvidos no fato. A glória neste caso é ser o primeiro a noticiar, este é o troféu, inclusive com letras garrafas (um erro primário de redação) “O FATO ESTÁ ACONTECENDO E VOCÊ JÁ FICA SABENDO”.
Pegando como exemplo a frase acima, que critérios ficam subentendidos como sendo os principais para a empresa que aprova essa publicação? Primeiro, a agilidade do repórter. Segundo, o fato. No caso apresentado, a morte da vítima. E por último, o nome da vítima e os detalhes do ocorrido. Entende-se que para essa empresa, a pessoa envolvida no acidente é a menor das preocupações, dado a sequência do LIDE apresentado. Para esta empresa o que vende, e consequentemente o que importa é a tragédia e não a vítima. Como Rene Russo disse no filme “se sangrar é manchete”.
No entanto, não pode-se acusar a empresa, de modo isolado, em trabalhar o fato dessa maneira. Além de ser uma prática comum desse mercado, nós mesmos, civis, somos acometidos por atitudes imorais quando, ao defrontarmos com um acidente na estrada baixamos o vidro do carro ou até estacionamos o veículo, não para oferecer ajudar (este é apenas a desculpa), mas para acompanhar de perto a tragédia alheia.
Somos humanos, evoluímos de animais, é natural que tenhamos esses instintos guardados dentro de nós. Mas o poder gigantesco que um meio de comunicação de massa possui não pode ser utilizado de forma tão indevida e mal cuidada como é hoje. Noticiar uma tragédia é uma tarefa muito importante e sério.
O título em português dado ao filme é perfeito: “O abutre” é um título pejorativo, mas muito real e doloroso. O abutre, ou o urubu, o corvo, não vai de encontro a vítima para oferecer ajuda, utilizar a tragédia como alerta para evitar uma próxima, ou apenas informar. O abutre vai ao local para saborear o fato, tirar dele nutrientes para se manter vivo e depois, ficar à espera do próximo.
O abutre é aquele “repórter” que joga um microfone na cara de familiares da vítima minutos depois de uma perda. O abutre é aquele “fotógrafo” que tira fotos de todo o cenário do fato, sem preocupação com rostos ou corpos expostos. O abutre é aquele “jornalista” que caça tragédias e volta pra casa, ou para redação, satisfeito, com o deve comprido e de barriga cheia.
               


Meu respeito a todos os jornalistas éticos e sérios, mas infelizmente toda profissão tem seus defeitos.



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