Pular para o conteúdo principal

Anomalisa




O problema de Anomalisa é que ele é um filme tão humano, mas tão humano, que incomoda de tão semelhante a realidade. E sim, estamos falando de uma animação em stop motion. Acontece que também estamos acostumados a ver no cinema a essência a vida, seus melhores momentos ou sua idealização. E isso faz com que quando ela é apresentada em sua forma crua, simples e... tediosa, não seja bem vista. Afinal, a magia do cinema não é justamente pular as partes chatas e mostrar o que realmente todos querem ver?

Em Anomalisa, Michael Stone é um palestrante motivacional que passa por uma crise existencial e busca por algo diferente e que mude sua vida. Acompanhamos um dia de sua vida, durante uma estadia em Cincinnati, aonde fará uma palestra sobre técnicas de atendimento.

O protagonista está infeliz, não se encontra no mundo e busca por algum “milagre” que o tire de um tédio insuportável. E desde o primeiro minuto de projeção somos jogados integralmente a este tédio. A proposta do diretor é arriscada e a primeira instância irrita. Acompanhamos o pouso do avião, o setor de desembarque, a viagem de táxi, a chegada ao hotel até um insuportável plano sequência de três minutos ininterruptos desde o check-in até a entrada no quarto.

Porém, tudo é proposital. Nessa imersão nos deparamos com a realidade de Michael: os diálogos tediosos, os movimentos que parecem controlados, e as palavras repetidas:

- Por favor, senhor: Dênis o irá acompanhar
- Por aqui, senhor, meu nome é Dênis.
- Qualquer coisa, é só me chamar. Meu nome é Dênis!

A própria câmera parece seguir esse marasmo e se arrasta junto a evolução da história, e quando muda os takes, os faz preguiçosamente e sem muito esforço. Os bonecos, que são impecavelmente bem trabalhados e com detalhes absurdos (observem as dobras da camisa de Michael, os reflexos nos espelhos e a composição de cenários), parecem cumprir suas obrigações rotineiras sem interesse e claro, todos, com os mesmos rostos e a mesma voz!

Toda essa apatia segue até o surgimento de Lisa. A qual Michael encontra dentro do hotel e praticamente a obriga a sair com ele. Lisa é diferente. Seu rosto e sua voz são os únicos que diferem dos demais. Ela é a anomalia que Michael encontrava. Por ser diferente dos demais, ele se apaixona, e os dois vivem ali, o amor impossível, o milagre que Michael procurava e que agora implorava para não terminar. “Fale qualquer coisa, apenas fale”.

SPOILERS



Sem apelar para o romantismo barato, o longa nos premia aqui com cenas e diálogos simples, mas de uma beleza pura. E não há como negar que as lágrimas rolam loucamente ao ouvir... Cindy Lauper!?

Lisa surge quando tudo parecia se encaminhar para um limbo. Quando sua última esperança de “mudar ou recomeçar” é destruída por ele próprio, ele então parece se transformar nesse limbo. Lisa é então a renovação, o diferente, o algo a mais que ele tanto buscava.

Porém, assim como tudo na vida de Michael, o encanto de Lisa também acaba. E é curioso como todo esse encanto tem fim, justamente quando os dois decidem que terão o amanhã, o dia seguinte. Depois que Lisa aceita o sim de Michael, sua voz muda e seu rosto some. A anomalia vira então rotina (e tinha como ser diferente?).

Aí entramos para a grande revelação do filme e o que o torna tão humano. A busca por uma resposta que as vezes nós próprios a carregamos. Michael carregava uma vida de certo modo depressiva, desanimada e sociopata. Porém eram os diálogos tediosos e triviais demais ou era o seu egocentrismo que os tornava assim? E é curioso notar que o próprio Michael dá a resposta em seu último discurso, quando, ao declarar a fórmula de como fugir do seu ostracismo, ele suplica: “preciso que lágrimas me dividam para que eu escape desse pesadelo”.

Michael implora por emoção, porém seu defeito é justamente não notá-la nos outros. Não perceber que todos nós, da nossa maneira, e por mais peculiar ou trivial que seja, temos a nossa própria emoção e precisamos (sim, é uma necessidade) dividi-la com os outros. E a paixão é uma das formas de fazê-la ser percebida, porém não é a resposta para conservá-la. Lisa, a mulher idealizada por Michael, nada tem de semelhante ao que Michael é. Isto fica exposto nos diálogos, nas falas e nos gestos de ambos. Um não tinha nada a ver com o outro, a não ser a necessidade de sentir-se vivo junto a alguém.

E quem disse que isso é errado? Também em sua última fala, Lisa agradece pelos momentos com Michael e diz que nunca sentiu nada igual. Ao passo que Michael diz que “nosso tempo é limitado”. Ou seja, tivemos emoção sem deixar o tempo passar. O que é isso senão viver? Que várias “anomalisas” surjam em nossas vidas, e que em ao menos uma delas, tenhamos o cuidado de torna-las ternas ou eternas.


Some boys take a beautiful girl
And hide her away from the rest of the world
I wanna be the one to walk in the sun
Oh girls they wanna have fun





Comentários

  1. Assisti o filme ontem e no final fiquei muito confuso com as minhas próprias emoções... Somos um pouco de MICHAEL, as vezes não damos o devido valor ao que temos, mas ao se aventuras em outras ondas, desistimos facilmente.... O problema estão naos coisas ou em nós mesmos? Fui dormir sem entender a mensagem do filme, mas agora vejo a brilhante ideia do diretor. Assistam

    ResponderExcluir
  2. Obrigado pelo comentário amigo(a) e por compartilhar sua percepção! E que bom que o diretor conseguiu mexer com as tuas emoções, não acha? Sinal que o objetivo foi alcançado! Abraços!

    ResponderExcluir
  3. Eu fiquei muito focado na provável psicose de Michael que pudesse ter surgido depois de algum evento traumático no passado. Essa provável psicose é corroborada pela cena do espelho. A mensagem do filme só é mostrada de fato durante a cena do café da manhã com Lisa, mas aí já era tarde demais. Gostei do filme, mas não achei o roteiro espetacular justamente por tentar abordar a psicose para depois se revelar sobre a apatia, o tédio que acomete a todos nós - ou até depressão. Se o autor não tivesse nos tentado enganar com a psicose para nos surpreender depois, a mensagem teria força maior.

    ResponderExcluir
  4. Cara, que crítica sensacional. Só senti um pouco a falta de comentários sobre a Bella. O fato de que ela já foi para Michael uma Anomalisa, mas que acabou afundando no limbo do tédio como todas as suas outras paixões, e só ao final do filme fica claro por que ele a deixou "sem sequer dizer adeus". Michael está condenado. Os últimos minutos não deixam dúvida.

    Novamente, ótimo texto!

    ResponderExcluir
  5. critica muito maneira, achei no meio da bosta q o omelete postou, tava procurando exatamente compreender como vc falou, parabéns pela critica, vou continuar acompanhando por aqui.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O amor é a flor da pele e eterno!

“Antigamente, se alguém tivesse um segredo que não quisesse partilhar, subiam uma montanha, procuravam uma árvore, abriam um buraco nela e sussurravam o segredo para dentro do buraco. Por fim, cobriam-o de lama e lá deixavam o segredo para sempre” A frase acima é dita por Chow Mo-Wang a seu amigo Ping, no filme Amor à Flor da Pele (2000), do diretor chinês Wong Kar-Wai, em uma das histórias de amor mais bem contadas do cinema, segundo muitos críticos. Kar-Wai consegue em seu filme dedicar ao amor a tradução que talvez mais o represente: a eternidade, ou o popularmente, até que a morte nos separe. Na história, conhecemos sr. Chow e a srta. Li-zhen Chan, os dois se mudam para Hong Kong da década de 60 com seus respectivos cônjuges no mesmo dia, onde ocupam quartos vizinhos de um mesmo edifício. Em comum, além do lugar onde vivem, os dois tem a ausência total dos parceiros, e posteriormente uma descoberta: seus cônjuges estão tendo um caso entre si. A descoberta aproxi...

Metaverso

Como a empresa de Mark Zuckerberg visualiza o nosso futuro No último dia 28 o Facebook comunicou a mudança do nome da empresa, passando de Facebook Company Inc. (proprietária, além do Facebook, do Instagram e WhastApp) para Meta Platforms Inc. Muito foi dito sobre os motivos que levaram a mudança, desde criar uma cortina de fumaça para os escândalos divulgados por Frances Hauges e intitulado Facebook Papers (link: https://www.cnnbrasil.com.br/business/facebook-papers-veja-o-que-os-documentos-vazados-revelam-ate-agora/) até uma clara desassimilação da empresa Facebook com a rede social de mesmo nome, que vem perdendo popularidade a cada dia, especialmente com os mais jovens. Ambos são assuntos que renderiam discussões à parte, mas aqui pretendo focar no conceito de metaverso, que há meses vem sendo difundido massivamente pelo Facebook e que Mark Zuckerberg aposta todas as suas fichas para construir seu novo império. O que é metaverso? Segundo a descrição do site Techtudo , “o metaverso ...

Aerosmith

Eu sou cria dos anos 90, então queria mesmo era ver hit atrás de hit do vocalista de roupas extravagantes e jeitos e trejeitos exagerados. Conheci Steven Tyler e companhia no lançamento do clip de Fly Away From Here, em 2001. Apresentado como o clip mais caro da história até então, e ambientado em um ambiente futurista, com direito a luta de robôs e Jessica Biel, a música me pegou na hora. Fui atrás de quem era aquela banda e me surpreendi duas vezes. Uma por serem os mesmos músicos da música tema do filme Armagedon, que mais tarde fui entender como a fantástica I Don’t Want to Miss A Thing. E outra por se tratar de uma banda ativa desde 1970. Talvez esse seja a principal resposta para o Aerosmith ainda fazer sucesso depois de 46 anos de estrada. E o que se viu no Anfiteatro Beira-Rio na noite de ontem foi um compilado de hits que buscaram agradar a incríveis três gerações de fãs. Da arquibancada, em minha frente via três casais com seus 30 a 40 anos. Ao meu lado, uma senhora de ...