Ou o texto de um colorado duplamente envergonhado!
Sim, ele vinha me irritando há
muito tempo. Desde o jogo contra o The Strongest na Bolívia não havia feito uma
partida boa e ainda permanecia de titular. Vibrei quando foi expulso, levantei
junto com a torcida e cansei de mandar ele para aquele lugar. E por mais
incrível que pareça, o texto que escrevo sobre esse episódio vem culpar a
torcida, e não o jogador.
Explico:
durante o episódio citado acima, em que o lateral esquerdo Fabrício, jogador do
Sport Club Internacional, desiste de jogar futebol, parte para a agressão
visual e verbal à torcida e joga no chão duas vezes a camisa colorada, um indício
de injúria racial contra o jogador foi movido no Tribunal de Justiça Desportiva
do Rio Grande do Sul. A partir desse fato, toda a atitude ridícula e vergonhosa
de Fabrício fica em segundo plano diante dos gritos de “macaco” vindos da
torcida ao jogador.
O
que ocorreu depois deste fato: o comunicador e colorado Luciano Potter, da RBS,
que assistia ao jogo próximo ao acontecido ouviu tais gritos racistas e em um
discurso inspirado e corajoso afirmou no programa ATL Grenal seu relato. O
depoimento de Potter motivou o procurador do TJD a dar início a uma denúncia
contra o Inter, que será baseado em depoimentos como o dele e nas imagens da
TV.
A
partir desse depoimento na rádio, o comunicador passou a ser perseguido nas
redes sociais acusado de não ser colorado e culpado de comprometer o time no
campeonato. São colorados que sentiram-se ofendidos com a denúncia de Potter e
optam por xingá-lo publicamente – mesmo que pela internet - por um ato lúcido e
corajoso.
Sou
colorado. Me senti totalmente ofendido quando Fabrício tirou a camisa do meu
time e a jogou no gramado do meu estádio. Mas essa ofensa não é nada comparada
a ver milhares de colorados ofendendo outro por denunciar e combater o racismo.
A
representação que fica é que vale tudo para defender um clube, inclusive
cometer crime. Os argumentos que estes torcedores defendem é que, caso não
houvesse a acusação de Potter, o inquérito contra o Inter também não iria para
frente. Pensaram no time e não no ato. Potter foi diferente. Sabia o poder que
o microfone que ele usa nas rádios Gaúcha e Atlântida possui e optou por não
ficar calado. Ao ouvir os gritos, um impasse provavelmente deve ter corrido
pela cabeça, defender o time que ama, ou uma causa que defende.
Infelizmente,
imagino que a grande maioria que estava naquele estádio não teria a mesma
atitude. Questiono se eu mesmo teria. Potter teve, se foi a causa ou o
marketing em torno dela que o motivou, nunca saberemos. Mas ele agiu. Diferente
da grande maioria da população, ele resolveu levantar a bandeira contra um crime
que a humanidade comete há séculos e que ainda é tratado como piada por
muitos. E o preço que paga hoje, é a rejeição
e insultos gratuitos.
Potter
soube diferenciar o cidadão do torcedor. Ao se ver em uma encruzilhada entre o
ético e o “aceitável”, optou pelo primeiro. E que jogue a primeira pedra quem
nunca entrou nessa encruzilhada também. Muito mais justo e igual seria o mundo
se atitudes como a de Potter, a de Luther King, a de Gandhi fossem seguidas.
Óbvio que o esforço do comunicador foi minúsculo comparado aos outros, mas foi
um passo. É inadmissível que a cor da pele seja motivo de ofensa contra
qualquer pessoa e mais absurdo ainda que isso seja aceito pela população.
Quem
ofendeu a atitude de Potter é tão racista quanto aos que no estádio xingavam
publicamente Fabrício de macaco. Sou torcedor doente colorado há 18 anos e um
clube, uma paixão não podem passar por cima de um crime. Aí a torcida vira
fanatismo, e fanatismo a gente sabe muito bem aonde pode parar.
Xingue
Potter a vontade, mas quando perguntado sobre ser racista ou não, pense duas
vezes na resposta. Uma sociedade não pode tolerar gritos racistas em um estádio
esportivo. Por mais simples que seja esse ato, ele carrega séculos de
segregação racial enrustido em seu DNA. É nosso dever limpar essas memórias e
reconstruir essa história. Os negros já conquistaram muitos direitos civis, mas
o caminho está longe do fim. Abrir mão dessa bandeira por um clube é se
apequenar, é regredir. Luto por um mundo em que macaco vive na selva e que
humanos tenham a plena consciência de diferenciar um irmão de um animal. Se eu não
conseguir, espero que ao menos meus filhos ou netos, tenham a oportunidade de
vivem em um mundo sem preconceito. Quanto mais Potters existirem, melhor.
O Clube do Povo
O Inter possuía o melhor slogan
que uma agremiação poderia ter: “O Clube do Povo”, e essa titulação decorre lá
de 1909, ano de sua fundação. Naquela época Porto Alegre possuía somente um
time de futebol profissional, o Grêmio Porto-Alegrense. Fundado em 1903, era
considerado o time da elite. Pessoas de níveis econômicos inferiores
dificilmente eram aceitos. Negros eram proibidos.
Nesse
contexto surgiu o Inter. Os irmãos Poppe resolveram criar um time em que todos
seriam aceitos, sem restrições. E assim se fez, o clube do povo surgiu e abriu
suas portas para ricos, pobres, brancos, negros, mestiços. Qualquer um poderia
participar daquela fundação. Queríamos mostrar para o Porto-Alegrense, o que se
confirmaria no futuro, que o futebol é sim, o esporte mais democrático do
mundo. Nossa ambição era tanta, que três meses depois da inauguração do Inter, os
desafiamos para uma partida. O resultado não poderia ser pior, um dez a zero
que ainda hoje é motivo de piada do lado deles.
A
questão é que a derrota só motivou ainda mais o pequeno time. De lá até o rolo
compressor de 1940 nosso time ganhou massa e popularidade. E tanta popularidade
nos levou a erguer, literalmente, um gigante do fundo das águas. Recebemos da
prefeitura um terreno alagado ao lado do Guaíba. Drenamos, terraplanamos e construímos
o Gigante da Beira Rio, tijolo por tijolo.
Em
uma campanha de mobilização o clube chamou todos os colorados para
ajudar na construção do nosso estádio. Aos poucos, um por um, milhares de
colorados levavam o que podiam ao número 891 da rua Padre Cacique: cimento,
tijolos, areia, mão de obra! O trabalho cooperativo demorou treze anos. Nesse
tempo não ganhamos praticamente nada, mas o prazer de ter o Beira-Rio como
nossa casa própria será eterno, e uma história como essa dificilmente será
recontada.
Com
o estádio pronto os títulos voltaram. Ganhamos o Brasil três vezes e nosso time
foi a base da seleção olímpica de 1984. O Beira-Rio era a casa do Clube do
Povo. Tão casa que criamos a Coréia, uma espécie de área popular no estádio com
ingressos a R$ 1,00. Naquele espaço era alegria do início ao fim da partida,
inclusive na década de 90, período em que não ganhamos nada de relevante e
comemorávamos gauchões.
Hoje
somos o time com mais sócios do Brasil e o sexto maior do mundo. Temos um exército
de torcedores que mensalmente contribuem para essa marca. Feito que nem
Corinthians, nem Flamengo, que possuem milhões de torcedores, conseguiram até
então. Fomos pioneiros em programa de sócios, fomos pioneiros em gestão de
futebol, fomos pioneiros em incentivo as categorias de base, fomos sedes de
duas Copas do Mundo, construímos um dos estádios mais modernos do país, sem
abrir mão de toda a nossa história. Tudo isso, sendo o Clube do Povo.
Até
chegarmos a América, e depois ao Mundo, ilustres ídolos negros passaram pelos
nossos campos. Desde Escurinho, nos anos 40, passando por Claudiomiro, fazendo
o primeiro Gol do Beira-Rio, a Valdomiro, Dario, Gérson, Caçapava, Manga, até os tempos de Luiz
Adriano, Fred e Tayson. Tudo isso, sendo o Clube do Povo.
Inúmeras
foram as conquistas de uma torcida popular que tanto lutou e suou para ver seu
time chegar ao lugar mais alto do mundo. O Inter é muito maior que um jogador
que desrespeita a camisa e racistas anônimos que desconhecem a própria história
do mundo. O Inter é e sempre será o Clube do Povo, que por ser feito de pessoas,
ganha e perde, fracassa e supera-se, mas nunca desiste, nunca cai. Acaso do destino
ou não, o Inter nasceu para ser Internacional, e para levar ao mundo a força do
povo que o criou.
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