Pular para o conteúdo principal

Sobre aquele que me ensinou a ler


Não é novidade para ninguém a minha incapacidade em recordar qualquer acontecimento que tenha ocorrido, nem que este fosse há dez minutos. Minha falta de memória é um carma que torço que mude algum dia.
Em compensação, há fatos muito antigos que me recordo com a maior facilidade e fatos novos, que tenho a certeza, ficarão guardados por um longo tempo.  O que aconteceu neste final de semana, por exemplo, é um deles. Perder alguém ao qual convivi a vida inteira junto não é nada fácil, ainda mais se tratando de um familiar.
Meu avô partiu nesta sexta-feira, vítima de câncer, que perdurou pelos últimos quatro anos de sua vida. Uma doença horrível, que anunciava a chegada de um dia ainda pior.
Sempre que via meu avô, nesses quatro anos, ele estava deitado em uma cama, se alimentando apenas de líquido e suportando a dor a base de calmantes. Uma situação indesejável para qualquer pessoa.
Saí da minha cidade no primeiro ano da doença e voltava para lá, em média, uma vez por mês. Acompanhei de longe essa degradação de uma vida, e que não espero recordar mais. Na sexta-feira, durante um tempo, pensei em não vê-lo pós-morte, mas em respeito a todos, e principalmente a ele próprio, dei meu último adeus!
Pois bem, este dia passou e também esses últimos anos duros e complicados. Felizmente tudo o que meu vô fez em vida foi muito maior e anula todo esse desgaste injusto sofrido por ele durante o período da doença. Tenho boas recordações dele, e tenho certeza que vou levá-las pelo resto da vida.
Durante toda a minha infância, sempre vi meu vô como um homem calmo, alegre, esperto, muito inteligente e zeloso com a família. Nunca falava, porém, fazia-se notar sua preocupação com todos lá de casa.
Lembro nitidamente (nitidez esta ajudada pelas gravações que tenho da minha infância), das muitas vezes em que, quando ainda criança, corria na direção dele com qualquer livro infantil, e o entregava para ler. Não éramos muito de conversar, nunca fomos. Dificuldade esta que se agravou com a surdez parcial a qual possuía. Porém, a leitura dos textos era obrigatória. Todo o dia, entregava-o um livro, sentava ao lado e acompanhava a história pelas gravuras.
Meu vô adorava ler, passou a vida sendo assinante do Correio Rio-Grandense e depois, de Zero Hora. Com o tempo, quando já conseguia ler sozinho, a briga era por quem pegava o jornal primeiro. Esportes e Segundo Caderno, comigo, política e economia, com ele, sempre assim.
Falando em esportes, éramos o Gre-nal da família! Aí não entrava somente eu, mas meu pai, minha irmã e minha mãe, todos fanáticos pelo Inter. Meu vô era o único que batia o pé e teimava ser gremista! A rixa era brava! Sofri nas mãos deles até chegarem os gloriosos anos do Sport Club Internacional! E olha que eles demoraram hein! Lembro claramente de duas coisas que ele sempre dizia: “Por que você torce para esse time? Ele nunca ganha nada!” E se coçava em rir vendo o time dele campeão da Copa do Brasil em 2001 enquanto me escondia embaixo da almofada! Flauta era com ele! Mas era o único que, quando o Grêmio não jogava, virava colorado, ou Juventude, ou Caxias. “Tem que torcer para time gaúcho”, dizia ele.
Estava certo meu vô! E não só se tratando de Grêmio e Inter. Em tudo! Imagem clássica lá em casa: entrar na sala fazendo barulho e ouvir meu vô pedir silêncio por que estava começando o Jornal Nacional! Nos domingos, ninguém mexia na TV até o programa do Silvio Santos não acabar! Era o único dia em que ele dormia mais tarde. Mas também, quem não ficava o domingo à noite acordado assistindo o Topa Tudo por Dinheiro?
Não lembro se eu e minha irmã topávamos tudo por dinheiro, mas por balas e chocolates, era certo! Outro ritual eternizado! Domingo era dia de carteado para ele, saía no início da tarde e voltava logo no entardecer. O jogo valia dinheiro, mas que ganhava o prêmio éramos nós!  Não tinha final de semana em que ele não aparecia com o bolso cheio de Diamantes Negros, balas Zezé e uma frase no rosto: “Comer só depois da janta”!
Com certeza inúmeras passagens ocorreram em todo esse tempo e que a minha memória já não consegue resgatar! Mas a principal delas nunca será apagada: a daquele velho disposto, com vontade e consciência de dar inveja a qualquer um. Um exemplo para a minha vida, daquele que, junto com a minha vó, cuidavam da casa, de mim e de minha irmã, enquanto meu pai e minha mãe saiam para trabalhar.
Daquele que me abriu o caminho das letras e dos livros quando eu ainda nem sabia ler! Daquele homem do campo, que mesmo com um ensino incompleto, para mim, tinha a melhor leitura do mundo!
Daquele que por circunstâncias da vida não conseguiu deixar nenhum valor em dinheiro para seus sete filhos. Na verdade, deixou muito mais. Colocou neles os valores da dignidade, humildade, confiança e principalmente honestidade. Hoje, todos eles estão muito bem de vida, tornaram-se, como ele mesmo ensinou, exemplos destes mesmos valores!
São poucos os que têm autoridade para dizer que possuem uma família perfeita! Provavelmente a minha também não seja, mas acho difícil encontra alguma que supere ela! Valeu vô!

Na sexta a noite, enquanto todos os meus tios, tias e primos e primas sentavam a mesa de jantar, ele foi o centro das atenções. Ele e minha vó, que, segundo relato de quem os acompanhou a mais tempo, eram dois apaixonados. Minha vó, encaminhada para um terceiro, deixou dele para ficar com meu vô. Como dizia ele: “A Inês sempre foi apaixonada por mim!”
Claro que foi, vô! Todos nós fomos e seremos eternamente apaixonados pela pessoa que você nos mostrou ser, e que nos servirá de inspiração para todo o sempre!

Se cuida aí em cima, vô! Te amo!

Comentários

  1. lindo André!!!
    Eu acompanhei de longe a batalha q foi, e não esqueço dele, um exemplo a ser seguido, mesmo na situação em q se encontrava havia nele um sorriso no rosto.. e não tem como não falar do seu pai!! Um exemplo de filho, dedicado, paciente,amoroso... coisa que muitos não são, outros teriam colocado em um asilo,ele não..me emocionei qndo meu pai me contou q na noite em q seu avô faleceu, seu pai ligou pro meu e disse: estou passando as últimas horas ao lado do meu pai!
    Vc é uma pessoa muito especial, pois tem uma familia linda,unida! e isso é dificil de existir hj em dia!
    Fique bem, pois seu avô está olhando por vcs lah de cima!
    Um grande beijo!
    Mirian Wittmann

    ResponderExcluir
  2. Filho, adorei o teu texto, soubeste espressar o que realmente foi...é isso mesmo filho, vc deve se sentir muito bem pois se teu vo lesse este texto tbm daria a risadinha normal dele e diria parabens...

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O amor é a flor da pele e eterno!

“Antigamente, se alguém tivesse um segredo que não quisesse partilhar, subiam uma montanha, procuravam uma árvore, abriam um buraco nela e sussurravam o segredo para dentro do buraco. Por fim, cobriam-o de lama e lá deixavam o segredo para sempre” A frase acima é dita por Chow Mo-Wang a seu amigo Ping, no filme Amor à Flor da Pele (2000), do diretor chinês Wong Kar-Wai, em uma das histórias de amor mais bem contadas do cinema, segundo muitos críticos. Kar-Wai consegue em seu filme dedicar ao amor a tradução que talvez mais o represente: a eternidade, ou o popularmente, até que a morte nos separe. Na história, conhecemos sr. Chow e a srta. Li-zhen Chan, os dois se mudam para Hong Kong da década de 60 com seus respectivos cônjuges no mesmo dia, onde ocupam quartos vizinhos de um mesmo edifício. Em comum, além do lugar onde vivem, os dois tem a ausência total dos parceiros, e posteriormente uma descoberta: seus cônjuges estão tendo um caso entre si. A descoberta aproxi

Volver

Falar de Almodóvar nunca é fácil. Uma das características do cineasta espanhol é seu atrevimento e coragem em propor nas telas seus conceitos e ideias. E é de atrevimento e coragem que se faz esse texto, ao tentar transpor em palavras um pouco de um dos filmes que mais aprecio em sua filmografia: Volver. Volver conta a história de Raimunda (Penélope Cruz), mulher casada e com uma filha de 14 anos, que ainda tenta superar a morte de sua mãe, enquanto cuida da tia. A personagem de Cruz, inclusive, é quem carrega o filme por completo e dá alma à trama. Cada cena da atriz renova o filme, que composto por um excelente roteiro, nunca deixa a história se esvair ou perder força. Não à toa, em muitas vezes vemos Penélope enquadrada ao centro da tela, tomando para si toda a sustentação do longa. Traduzindo essa percepção para a personagem Raimunda, é assim que ela também encara a sua vida. Uma vez que, mesmo com um casamento complicado, dificuldades financeiras crescentes e um passado

Sobre jornalismo, marketing e uma das maiores tragédias do país

Eu não entendo de prevenção de desastres, gestão de crises e ações do governo, mas entendo de jornalismo e marketing. E sobre esses dois pontos, a história tende a julgar o que aconteceu esta semana no país.  Jornalismo: Não é a maior tragédia do estado, é uma das maiores tragédias do país, e as demais regiões do Brasil demoraram ou ainda não estão entendendo o tamanho dessa escala. E parte dessa culpa recai sobre a mídia. A nível nacional não houve plantão, a programação seguiu sua transmissão normal e pouca, muito pouca prestação de serviços. O fato foi comunicado apenas de maneira jornalística. Em tragédias, o jornalismo deixa de ser veículo de comunicação e passa a ser serviço público. Para não ficarmos apenas pensando em TV e rádio: eu assino uma newsletter diária de notícias que chega para milhões de pessoas em todo o país. No dia 2 de maio, a newsletter utilizou três linhas para comunicar sobre o Rio Grande do Sul. Três linhas. O jornalismo não é mais mecânico, e os termos, as